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15 de março de 2022

América do Sul: os desafios da democracia na região, a partir da experiência de três países

Para onde sopram os ventos de mudança política na América do Sul? Conversamos com figuras públicas de três países: Venezuela, Chile e Colômbia.

Baixo crescimento econômico, alta desigualdade social, crescente polarização política e muita violência. Superar esses problemas são desafios comuns a praticamente todos os países sul-americanos, sobretudo após a pandemia de Covid-19, que agravou a pobreza, o desemprego e a informalidade. Entretanto, ainda não está claro quais países os enfrentarão aprofundando e aprimorando a democracia, e quais se renderão ao populismo ou mesmo a aventuras autoritárias.

Embora a esquerda tenha tido vitórias importantes no Chile e no Peru, em 2021, e na Bolívia, em 2020, e desponte como favorita nas eleições presidenciais na Colômbia, em maio próximo, e no Brasil, em outubro, ainda é cedo para dizer que a região viva uma “nova onda rosa”, como ocorreu no início do século 21.

Para discutir os desafios presentes e futuros da democracia na América do Sul, e quais as dinâmicas políticas que surgem e se fortalecem no período pós-Covid, a Fundação FHC convidou três figuras públicas respeitadas na região: a socióloga venezuelana Margarita López Maya, o politólogo e ex-ministro chileno Heraldo Muñoz e o senador colombiano Humberto de la Calle.

“Às vésperas da eleição presidencial, a Colômbia vive um período de muita insatisfação e tensão, agravado pelos impactos da pandemia. Desde o ano passado, tivemos mobilizações inéditas que revelam um sentimento de ruptura social devido ao aumento do desemprego e à falta dos três alimentos tradicionais na mesa dos lares colombianos. Os desafios são grandes, mas acredito que conseguiremos enfrentá-los dentro da democracia, sem apelar para o populismo e o autoritarismo”, disse Humberto.

“No Chile, acaba de assumir o presidente mais jovem de nossa história, à frente de uma coalizão de esquerda, bastante distinta da Concertación, coalizão de centro-esquerda que governou o país na maior parte dos últimos 40 anos. A eleição do ex-líder estudantil Gabriel Boric é fruto de uma mobilização popular muito grande, que teve causas justas, mas também resultou em bastante violência. Felizmente conseguimos construir um caminho democrático e vivemos um período de lua de mel com o novo governo, mas há muitos pontos de interrogação nos próximos meses e anos”, explicou Heraldo.

“Na Venezuela, estamos absolutamente fora do âmbito da democracia. Temos um regime autoritário consolidado e longevo, que tem total controle social e político sobre o país. A oposição, duramente perseguida, é fragmentada e errática. A novidade é que o governo Maduro está colocando em prática uma liberalização econômica anárquica e desordenada, sem que haja qualquer sinal de uma transição democrática”, afirmou Margarita.

Colômbia se debate entre a insatisfação popular e o medo das elites

O advogado e político colombiano Humberto de la Calle, chefe da equipe que negociou o acordo de paz com as FARC, lembrou que nas últimas décadas a Colômbia obteve vitórias importantes nos campos socioeconômico, com a redução da pobreza e a melhora dos índices de criminalidade, e político, com a assinatura do acordo de paz com o ex-grupo guerrilheiro, o maior e mais longevo da América Latina. Entretanto, o acirramento da polarização política nos últimos anos e os impactos sociais da pandemia ameaçam essas conquistas.

“A Colômbia vive hoje uma grande insatisfação popular e o apoio à democracia está abaixo da média da região, como mostra a pesquisa Latinobarômetro 2021. O problema é que dificilmente um presidente que faça o que deve ser feito conseguirá se manter popular, pelo menos no curto prazo. O risco é quem for eleito apelar para o populismo”, explicou De la Calle, que foi ministro do Interior em dois governos e vice-presidente da Colômbia.

Nas eleições legislativas de 13 de março, a direita, que está no governo e foi responsabilizada pelos impactos da pandemia, sofreu importante derrota, perdendo várias cadeiras no Senado e na Câmara dos Representantes. Mas nenhuma  força política conquistou uma maioria clara, resultando na formação de três blocos mais ou menos equivalentes. “O futuro governo será forçado a negociar, o que é positivo”, disse.

Na mesma ocasião, houve três consultas intrapartidárias, espécie de primárias, em que as coalizões de esquerda, de direita e de centro definiram seus candidatos a presidente da Colômbia, na eleição prevista para 29 de maio. Gustavo Petro – que fez parte do grupo guerrilheiro M-19 nos anos 1980, mas depois se integrou à política e foi senador, prefeito de Bogotá e finalista na eleição presidencial de 2018 – foi o mais votado entre os postulantes do Pacto Histórico, a coalizão de esquerda.

Federico Gutiérrez foi escolhido candidato da coalizão de direita Equipo por Colombia; e Sergio Fajardo, da coalizão Centro Esperanza. Ambos foram prefeitos de Medellín. Esses serão os principais candidatos, mas outros poderão se apresentar, inclusive independentes.

Com 98,64% das mesas apuradas, o Pacto Histórico obteve 5.750.663 votos, 14,81% do total de eleitores aptos a votar na eleição (38.819.901). A coalizão Equipo por Colombia recebeu 4.104.163 votos, ou seja, 10,57% do total de votos. A coalizão Centro Esperanza recebeu 2.275.217 votos, 5,86% do total de votantes. No total, 31,24% dos eleitores aptos a votar participaram das eleições intrapartidárias. O voto não é obrigatório na Colômbia.

“Petro confirmou o favoritismo para o primeiro turno, mas nada garante que saia vitorioso se houver segundo turno. A direita obteve o segundo lugar nas primárias, o que mostra que está viva. Houve uma intensificação da polarização, o que traz uma enorme incerteza em relação ao resultado final da eleição presidencial”, disse Humberto.

De la Calle explicou que Gustavo Petro vem moderando o seu discurso, ao abandonar as ideias marxistas e o tom mais agressivo do passado, e conseguiu atrair praticamente toda a esquerda e também grupos mais ao centro para a sua coalizão.

“A Colômbia hoje se divide entre uma grande insatisfação popular com o atual governo, o que beneficia Petro, e o medo das elites e de parte da classe média diante da possibilidade de vitória de um ex-guerrilheiro que conseguiu unificar praticamente toda a esquerda em torno de sua candidatura. Não será uma disputa fácil, mas estou confiante de que a democracia, mais uma vez, vai prevalecer”, concluiu. 

Maduro quer liberalização econômica sem transição democrática

Diferentemente dos demais países da América do Sul, onde apesar dos problemas e das ameaças a democracia segue viva, na Venezuela ela deixou de existir há alguns anos, com o progressivo ataque às instituições democráticas promovido pelo ex-presidente Hugo Chávez (morto em 2012) e seu vice e sucessor, Nicolás Maduro, eleito presidente em 2013 e reeleito em 2018, em votação controversa.

“A debilidade de instituições como os Poderes Judiciário e Legislativo é muito grande, assim como das forças democráticas. Como Maduro nunca vai admitir sua saída, um retorno à democracia não está no horizonte”, disse a socióloga Margarita López Maya, professora aposentada da Universidade Central da Venezuela. De 1958 até a consolidação da ditadura chavista, a Venezuela foi a democracia mais duradoura da América do Sul.

A única esperança de melhora, diz Margarita, se assenta em um “esforço de reinstitucionalização de baixo para cima”, que está sendo tentado por algumas organizações emergentes da sociedade civil, como o Foro Cívico de Venezuela. “Temos visto pequenos passos em uma estratégia gradualista que visa, por exemplo, tornar as eleições regionais mais transparentes e fortalecer pouco a pouco o Poder Judiciário. É o que temos, por hora”, relatou. 

No plano socioeconômico, a situação segue extremamente complexa, com mais de 90% da população vivendo na pobreza, inflação anual superior a 600% e uma profunda crise humanitária que já dura vários anos. Para tentar tirar a economia do chão, Maduro está promovendo uma liberalização econômica que a palestrante qualificou de “anárquica e desordenada”. 

“As tarifas de importação foram reduzidas, e as lojas ou barracas vendem tudo quanto é tipo de produtos importados, dos básicos aos de luxo, em dólares. Quem tem dólares, que são menos de 20% dos venezuelanos, consegue comprar o que precisa; os demais, não. É o que chamamos de economia de bodegones”, explicou.

Segundo a palestrante, o governo também planeja privatizar as empresas estatais, mas não há qualquer transparência no processo: “Não sabemos quais serão as condições de venda, os valores e nem mesmo quem serão os novos donos. Os amigos do governo, conhecidos como enchufados, são a burguesia emergente do país.” 

Há um segundo fator, este externo, que pode ter impacto internamente: a eventual reaproximação entre a Venezuela e os Estados Unidos, motivada pela Guerra na Ucrânia e a necessidade do governo norte-americano de comprar da Venezuela o petróleo que deixou de importar da Rússia, após as sanções impostas por Washington a Moscou.

“No início de março, uma delegação dos EUA, presidida por Juan González, o principal assessor do presidente Joe Biden para a América Latina, esteve em Caracas, onde se encontrou com Maduro. Logo em seguida, o venezuelano, que antes apoiava integralmente a política externa russa, começou a mudar de discurso, ainda que de maneira contraditória”, disse Margarita.

Especula-se que os EUA poderiam rever as sanções que foram impostas à Venezuela há vários anos, como uma forma de pressionar o país a retornar ao caminho democrático, o que ainda não aconteceu. Em troca, Caracas garantiria a oferta de petróleo venezuelano, em substituição ao petróleo russo.

“A invasão da Ucrânia mudou o jogo geopolítico no mundo e também nas Américas. Depois de anos sob pesadas sanções, a Venezuela vê uma chance de se incorporar novamente ao mercado internacional de petróleo. Maduro poderia triplicar os recursos originários da venda de petróleo rapidamente”, disse López. 

A dúvida é se essa reaproximação entre Caracas e Washington resultará em concessões do regime Maduro no sentido de iniciar uma transição democrática no país, ou se apenas fortalecerá os cofres do regime sem que haja qualquer contrapartida interna. “Pode ser uma janela de oportunidade, mas não sabemos”, concluiu.

Gabriel Boric tem apoio da população, mas precisará dar respostas concretas

Após vários anos de mobilizações estudantis e de outros setores da sociedade civil, que culminaram com a presença de mais de 1 milhão de pessoas nas ruas de Santiago no final de 2019, a democracia chilena se mostrou resiliente e conseguiu acordar um caminho para o país superar o impasse político em que se encontrava. Há esperança, e também há muita expectativa.

“Em novembro de 2020, 80% dos chilenos votaram a favor da redação de uma nova Constituição por uma Assembleia Constituinte eleita especificamente com esse fim. Em maio do ano passado, a Assembleia foi eleita, com paridade de gênero e vagas reservadas aos povos originários. Desde julho, os constituintes estão trabalhando. Em dezembro passado, o candidato de esquerda Gabriel Boric venceu o ultradireitista José Antonio Kast no segundo turno da eleição presidencial, com a maior votação da história chilena. Essa sucessão de fatos mostra que a democracia está funcionando no Chile”, disse o cientista político Heraldo Muñoz.

Os desafios diante do novo presidente, no entanto, não são triviais. “Houve um grande fortalecimento da sociedade civil, do movimento estudantil aos movimentos populares, de grupos independentes aos movimentos ligados aos povos originários, e também dos  movimentos identitários. As expectativas são muito elevadas. Boric terá que se mostrar capaz de administrá-las e entregar resultados, ainda que leve algum tempo”, explicou Muñoz, que foi candidato a presidente pelo PPD (centro-esquerda) no ano passado, mas não chegou ao segundo turno.

Como Boric vai se relacionar com as elites empresariais e políticas, que historicamente detêm muito poder, e com o próprio Congresso chileno, cuja composição é mais tradicional e conservadora? Como o Parlamento e os setores mais conservadores da sociedade receberão a nova Constituição, que deverá mudar vários pilares que sustentaram o desenvolvimento econômico e social chileno nas últimas décadas, sobretudo após o fim da ditadura Pinochet, em 1990? Ao final do processo constituinte, está prevista a realização de um novo referendo em que a população deverá aprovar ou rejeitar a nova Carta. A nova Constituição será bem-sucedida?

Segundo Heraldo, a política chilena hoje já não pode ser analisada somente com base no eixo direita-esquerda: “A polarização segue forte, mas a dicotomia agora é entre elite, de um lado, e povo, do outro, o que é ainda mais preocupante. As classes populares, com apoio dos estudantes e de parte da classe média, exigiram melhorias concretas em vários aspectos de sua vida. Saíram vitoriosas no processo político e não vão desistir”, disse.

“Boric precisará realizar reformas sociais profundas, no sentido de melhorar o estado de bem estar social, e ao mesmo tempo precisará recuperar a economia chilena, que sofreu bastante com a pandemia. Ele precisará não só fazer o Chile voltar a crescer como aumentar a arrecadação de impostos em termos de percentual do PIB (um dos mais baixos da América do Sul). Tudo isso em um contexto internacional bastante complicado devido à Guerra na Ucrânia e seus impactos em todo o mundo, sobretudo no campo energético”, disse o palestrante, que foi ministro das Relações Exteriores durante o segundo governo Bachelet.

“Quando estava na oposição, Gabriel Boric sempre olhou para o copo meio vazio, em relação aos avanços conquistados sob os governos da Concertación, agora que é presidente terá de olhar para o copo meio cheio. Ele terá de fazer uma espécie de crítica geracional e construir o futuro. Uma de suas apostas será na economia verde e azul, com uma perspectiva de desenvolvimento mais contemporânea e moderna. Suas referências internacionais são o Canadá, a Nova Zelândia e os países escandinavos. Talvez a Espanha também. Vai dar certo? Será muito interessante observar seu desempenho, que determinará o futuro da democracia no Chile e, possivelmente, influenciará outros países da região”, concluiu.

Quais as expectativas em relação à eleição presidencial no Brasil em outubro?

Já na parte final do encontro, o cientista político Sergio Fausto, diretor da Fundação FHC, perguntou aos três palestrantes sobre as expectativas em seus países em relação à eleição do próximo presidente brasileiro, levando em consideração que, neste momento, dois candidatos fortes parecem polarizar a disputa: o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o atual presidente Jair Messias Bolsonaro. “Que impactos a vitória de um ou do outro terão em seus países?”, perguntou Sergio.

“Existe uma estranha distância entre o Brasil e a Colômbia e vice-versa. O Brasil é uma grande economia, temos a Amazônia em comum, mas os ventos que sopram do Brasil não são determinantes para a economia, a política e a sociedade colombiana. Não prevejo que a eleição no Brasil tenha repercussão direta na Colômbia. A política chilena nos influencia mais”, respondeu Humberto de la Calle.

“A eleição de Lula, como um importante e experiente líder da esquerda democrática na região e no mundo, poderia ser interessante para pressionar Maduro a participar mais seriamente de uma mesa de negociação. Já a continuidade de Bolsonaro não ajudaria em nada”, disse Margarita López Maia.

“O Brasil é muito importante para o Chile, do ponto de vista econômico, pois há muito investimento chileno no país, e também do ponto de vista político e diplomático. Se Lula vencer, haverá sintonia entre o governo de Gabriel Boric e o novo governo brasileiro. Se Bolsonaro vencer, a distância será enorme. É preciso lembrar também que a ultradireita chilena tem admiração por Bolsonaro. Logo, existe no Chile uma preocupação com o tema das fake news e os ataques à democracia”, afirmou Heraldo Muñoz.

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Otávio Dias é editor de conteúdo da Fundação FHC. Jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br. 

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