A ideologia por trás da extrema direita no Brasil e no mundo, com Benjamin Teitelbaum
Neste debate, o professor e pesquisador norte-americano resumiu o pensamento por trás do tradicionalismo.
“Vivemos uma era de agitação e de confrontação com um status quo maligno, secular e globalista, e a única maneira de recuperarmos uma sociedade ideal, espiritualizada e ordenada como a que (supostamente) existiu no passado, é através da destruição da sociedade que existe hoje e de suas instituições, o que por fim conduzirá a um renascimento”.
Assim o etnógrafo, professor e pesquisador norte-americano Benjamin Teitelbaum resumiu o pensamento por trás do tradicionalismo, sistema filosófico-moral que valoriza a tradição, entendendo-a como o conjunto de hábitos e tendências que procuram manter uma sociedade no equilíbrio das forças que lhe deram origem (Dicionário básico de filosofia, Edit. Zahar).
Embora o tradicionalismo não seja uma doutrina essencialmente política, ele fornece duas ideias-chave para os movimentos de ultradireita que têm surgido com força nos Estados Unidos, em países da Europa Ocidental e Oriental, incluindo a Rússia e também no Brasil. A primeira ideia-chave é que é preciso restaurar um passado idealizado. A segunda é que esse passado foi perdido por uma degeneração moral, sobretudo pelo progressivo abandono da religião e pelo materialismo.
Na conversão do tradicionalismo em ação política o que deve ser restaurado é a homogeneidade étnica, cultural e racial do povo e da nação e uma ordem social com hierarquias e papéis sociais bem definidos. A restauração passa por um regeneração moral, a ser feita não por sacerdotes, mas por líderes políticos que expressem a suposta homogeneidade essencial do povo e da nação, em contraposição a uma elite secular, racionalista e globalista disposta a sacrificar o povo para manter seus privilégios.
Teitelbaum passou mais de um ano entrevistando pensadores e lideranças “tradicionalistas” e essa pesquisa resultou no livro “A guerra pela eternidade: o retorno do tradicionalismo e a ascensão da direita populista”, lançado no Brasil pela Editora Unicamp. Veja a seguir quatro perguntas feitas ao professor da Universidade do Colorado pelo cientista político Sergio Fausto, diretor da Fundação FHC, e pela jornalista Letícia Duarte, colaboradora do El País e da revista piauí.
***
Sergio Fausto – Quais são as características do tradicionalismo em comparação com as de outras ideologias de extrema direita, como o fascismo? O que há de diferente e o que há de semelhante?
Benjamin Teitelbaum – Vamos começar com as semelhanças. Com o fascismo, há em comum o desejo por ordem, de que as coisas e os grupos sociais estejam em seus devidos lugares. Em alguns ramos do tradicionalismo, temos a valorização da raça, no caso da supremacia branca ariana, e da masculinidade.
Quanto às divergências, o tradicionalismo, diferentemente do fascismo, não olha para o futuro com otimismo e não propõe construir um mundo que seja ‘melhor’ do que o atual. Investe todas as fichas na ideia de que a vida no passado era superior e que, por meio da destruição da sociedade atual, é possível reviver aquele passado glorioso. Para alcançar esse objetivo, quer ver o mundo em que vivemos esgarçado e rompido ao meio, o globalismo desfeito, o secularismo abandonado e a igualdade entre os homens e as mulheres destruída.
Letícia Duarte – O norte-americano Steve Bannon, o brasileiro Olavo de Carvalho e o russo Aleksandr Dugin são gurus inspirados pelo tradicionalismo (embora Olavo negue isso) que têm ou tiveram influência nos governos dos Estados Unidos (durante o governo Trump), do Brasil (Bolsonaro) e da Rússia (Putin). Como as ideias dessas três figuras se interconectam e até que ponto eles utilizam elementos do tradicionalismo para tentar influenciar a política e os governos de países tão relevantes?
Teitelbaum – O tradicionalismo, originalmente, não era uma ideologia política e, para muitos de seus seguidores, continua não sendo. É uma doutrina filosófica-espiritual, uma crença na maneira como o tempo passa, como a sociedade era no passado e voltará a ser. Uma das consequências disso é que ele não oferece algo de específico ou concreto àqueles que querem levá-lo para o universo da política contemporânea.
O que o norte-americano Steve Bannon, o brasileiro Olavo de Carvalho e o russo Aleksandr Dugin têm em comum é que os três veem a política global como palco de uma disputa entre materialismo e espiritualidade. Eles divergem, no entanto, em relação a quem representa o materialismo e quem representa a espiritualidade.
Para Olavo, os cristãos do meio rural e de pequenas cidades são os atuais mantenedores de uma vitalidade espiritual verdadeira, seja nos EUA, no Brasil ou em outros países. Já a China seria a principal força do materialismo secular e da globalização.
Dugin, por sua vez, acredita que o liberalismo ocidental foi a principal força impulsionadora da globalização e da secularização e qualquer força geopolítica que se levante contra o Ocidente, principalmente os Estados Unidos, deveria ser apoiada pelos tradicionalistas.
Mas talvez a coisa mais importante que une essas três figuras é a crença de que vivemos uma era de agitação e de confrontação com um status quo maligno, secular e globalista, e a única maneira de recuperarmos uma sociedade ideal, espiritualizada e ordenada como a que supostamente existiu no passado, é através da destruição da sociedade que existe hoje e de suas instituições, o que por fim conduzirá a um renascimento. Existe, portanto, um desinvestimento no processo de construir, que é do que, afinal, se trata a política tal como a conhecemos.
Fausto – Qual o papel da violência na escola de pensamento tradicionalista?
Teitelbaum – Se pensarmos na violência como uma forma de destruir aquilo que existe hoje, ela tem um papel potencialmente central. Alguns tradicionalistas acreditam em ciclos de tempo, que o progresso não acontece de forma linear, contínua, mas que o tempo está sempre girando, de maneira que de um tempo de trevas pode surgir uma nova era de ouro. Após uma calamidade, uma catastrófica implosão da sociedade, algo novo e muito bom pode surgir. Há também outros ramos do tradicionalismo que acham que as pessoas podem acelerar a história por meio da violência e da destruição em larga escala. Ou seja, como indivíduo, é possível fazer algo que afete esse gigantesco processo cósmico.
Quando entrevistei Steve Bannon, por exemplo, me chamou muito a atenção sua descrição de Donald Trump como sendo ‘o homem certo, na hora certa, no lugar certo’. Com certeza, o ex-presidente norte-americano não sabia nada sobre os ciclos de tempo do tradicionalismo, pois nunca deve ter lido nem um parágrafo da literatura tradicionalista, mas, mesmo sem saber direito o que estava fazendo, ele sem dúvida representou uma força de destruição da sociedade norte-americana.
Duarte – Em seu livro, você afirma que o tradicionalismo não elege uma religião específica como a única capaz de conduzir seus seguidores no caminho correto, mas sabemos que alguns tradicionalistas têm forte ligação com o hinduísmo, outros com vertentes místicas do judaísmo, cristianismo e islamismo. Pode explicar melhor a relação entre o tradicionalismo e a espiritualidade, ou a religião?
Teitelbaum – Uma das crenças centrais do tradicionalismo é que milênios atrás havia uma religião verdadeira — uma tradição milenar e perene, vindo daí o nome do movimento, também conhecido como “perenialismo” — que foi gradualmente esquecida pela humanidade. Aquela tradição se desintegrou e se espalhou em diferentes direções. As religiões existentes hoje que melhor refletem aquela religião original seriam as mais antigas e que mantêm vivas práticas ancestrais quase sem interrupção. Nesse sentido, a que mais se qualifica é o hinduísmo, que permanece ativo há milhares de anos na Índia, diferentemente das práticas pagãs europeias ou do zoroastrismo da antiga Pérsia (hoje Irã).
Mas há também tradicionalistas que seguem o sufismo (corrente mística e contemplativa do islamismo), a cabala (tradição mística judaica), seitas budistas e cristãs. Os tradicionalistas acreditam que o caminho religioso que cada um escolhe seguir no presente é secundário em relação a algo maior que ficou no passado e um dia voltará. Se a pessoa se devotar a um caminho espiritual durante toda a sua vida, provavelmente terá uma visão do que foi aquela tradição religiosa milenar no passado.
Para saber mais:
No episódio 4 do podcast Retratos Narrados, a jornalista Letícia Duarte narra suas entrevistas com o “guru” Olavo de Carvalho.
Leia o artigo Por que as identidades nacionais importam, de Francis Fukuyama, publicado no Journal of Democracy em Português em novembro de 2018.
Assista à palestra de Steven Levitsky, autor de “Como morrem as democracias”, na Fundação FHC em agosto de 2018 (com legendas).
Otávio Dias é editor de conteúdo da Fundação FHC. Jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br.