Debates
18 de outubro de 2016

A China sob Xi Jinping: o que quer e o que pode o líder chinês?

“A China desenvolveu uma enorme capacidade de realizar grandes obras que pode ser útil a países que precisam melhorar sua infraestrutura”, disse Lanxin Xiang, professor, pesquisador e autor.

“Xi Jinping é ao mesmo tempo moderno e conservador. Conservador porque defende o sistema e quer que ele seja mais eficiente. E moderno porque representa a chegada ao poder da geração nascida nos anos 50, que viveu todas as fases do regime e conheceu o mundo.”
Lanxin Xiang, professor, pesquisador e autor

A China passa por uma profunda transformação econômica em que o modelo de desenvolvimento baseado na exportação em larga escala de produtos manufaturados, tão bem-sucedido nas últimas décadas, começa a ceder espaço a duas novas tendências: o estímulo ao consumo interno e a exportação de serviços de construção de infraestrutura para países em desenvolvimento, entre eles o Brasil.

“A China desenvolveu nas últimas décadas uma enorme capacidade de realizar grandes obras que pode ser útil a países que precisam melhorar sua infraestrutura”, disse Lanxin Xiang, professor do Instituto de Graduação em Estudos Internacionais e de Desenvolvimento de Genebra (Suíça), na Fundação FHC.

Durante sua palestra, Lanxin fez um balanço dos primeiros três anos e meio de mandato do presidente Xi Jinping e falou sobre os principais desafios que o líder chinês tem pela frente. “Xi atingiu objetivos importantes desde que assumiu o poder (em 14 de março de 2013), mas precisará lidar com várias crises ao mesmo tempo antes do próximo Congresso do Partido Comunista da China”, afirmou Lanxin, que dirige o Centro de Estudos ‘One Belt & One Road’ (leia mais sobre o assunto abaixo).

O 19º Congresso do PC Chinês acontecerá no segundo semestre de 2017, quando Xi Jinping deve ser escolhido para um segundo mandato presidencial. Ele também exerce a função de secretário-geral do partido que desde 1949 governa a República Popular da China. Além disso, é comandante em chefe das Forças Armadas chinesas. Nenhum líder depois de Mao Tse Tung ocupou essas três posições-chave na estrutura de poder chinesa.

 
 

Veja abaixo quais são as principais questões domésticas, regionais e mundiais que disputam a atenção de Xi Jinping.

1 – Combate à corrupção

De acordo com o palestrante, a corrupção institucional amplamente disseminada no PC chinês e nos diversos níveis de governo ameaçava corroer a legitimidade do próprio regime. “Desde o tempo de Confúcio (551 a.C – 479 a.C), é muito forte na China a ideia de que o governante precisa ter superioridade moral para liderar. Se entre os chineses se solidificasse a percepção de que o centro do poder tem se comportado de forma imoral, é provável que o regime mais cedo ou mais tarde perdesse legitimidade. Por isso, Xi Jinping resolveu enfrentar o problema tão logo assumiu o governo”, explicou Lanxin.

Segundo verbete em inglês da Wikipedia, até este ano a campanha anti-corrupção já atingiu 120 autoridades chinesas de alto nível, inclusive cerca de uma dúzia de militares de alta patente, diversos executivos sêniores de companhias estatais e ao menos cinco líderes nacionais. Em junho do ano passado, o ex-chefe de segurança da China Zhou Yongkang foi condenado à prisão perpétua. Mais de 100 mil pessoas já foram indiciadas por corrupção.

“Não tenho certeza se a campanha contra a corrupção resultará em maior ou menor estabilidade, mas Xi foi muito corajoso e tem apoio da população. Antes dele, nenhum outro líder chinês havia atacado o problema, pois obviamente provocava muita reação”, disse.

2. Estímulo ao consumo interno

O segundo grande desafio do líder chinês é a transformação da economia chinesa, que enfrenta um problema estrutural: as exportações do país, que durante muitos anos garantiram taxas de crescimento do PIB próximas ou superiores a 10%, sofreram as consequências da crise econômica que, desde 2008, reduziu o crescimento da economia mundial e o comércio global. “O presidente Xi Jinping e o premiê Li Keqiang tomaram então a decisão de fazer a transição de uma economia baseada na exportação para uma economia baseada no consumo interno dos quase 1,4 bilhão de chineses”, disse Lanxin.

A China tem uma taxa de poupança de quase 50% do PIB, a mais alta do mundo.

Uma das explicações para este fenômeno é o deficiente sistema de proteção social chinês, que obriga às famílias a poupar muito para custear a aposentadoria na velhice ou sobreviver em situações de desemprego.. “Hu Jintao (antecessor de Xi Jinping) enviou especialistas para conhecer os sistemas da Alemanha e da Suécia e, desde então, a China já vem criando um sistema de bem-estar social que, no entanto, precisa ser sustentável”, afirmou.

Além do excesso de poupança, a China tem um sistema financeiro ainda rudimentar se comparado ao dos principais países do Ocidente, em particular em relação ao financiamento ao consumo.

“Como balancear a necessidade de manter um nível saudável de poupança doméstica e, ao mesmo tempo, liberar a enorme energia represada para estimular o consumo? É disso que a transição atual depende”, disse Lanxin. “Até o momento, o governo ainda não conseguiu obter grande avanço. Há muito trabalho pela frente.”

3. Projeto ‘One Belt & One Road’

Nas últimas décadas, a China aproveitou os recursos gerados por suas altíssimas taxas de crescimento para fazer uma revolução na infraestrutura do país, construindo linhas de trem de alta velocidade, aeroportos internacionais, portos, estradas e grandes hidrelétricas, entre outros investimentos que transformaram o país.

Embora ainda exista demanda para seguir modernizando sua própria infraestrutura, essa enorme capacidade de construção tende a se tornar ociosa e precisa ser direcionada para outros países. “A ideia é compensar a perda de fôlego do antigo modelo de exportação de produtos manufaturados com a exportação dessa capacidade de construção de infraestrutura”, explicou Lanxin.

Como parte dessa estratégia, o atual governo chinês desenvolveu uma iniciativa apelidada de “One Belt & One Road” (OBOR), que, em português, seria algo como ‘um cinturão & uma estrada’. A ideia é conectar o território chinês, por meio de estradas, ferrovias, oleodutos e gasodutos, à Rússia e aos países da Ásia Central e do Oriente Médio, chegando até a Europa (do Leste e do Sul). Além da integração externa, o projeto busca incorporar à dinâmica do desenvolvimento chinês, muito concentrado na região da costa do Pacífico, as regiões situadas no centro e no oeste do país, bem mais pobres e atrasadas.

Outra parte do projeto, também chamada de Rota da Seda Marítima do Século 21, melhorará a ligação marítima da China com o Sudeste Asiático, a Índia, partes da Oceania, Península Arábica e leste e norte da África. Ao todo, 64 países devem participar do mega-projeto de infraestrutura e desenvolvimento.

 


“O Banco Mundial não tem feito o suficiente (para ajudar o desenvolvimento da infraestrutura dos países em desenvolvimento). As potências ocidentais fizeram isso no século 19, mas depois pararam”, disse o palestrante, acrescentando que a China não tem, ao contrário das potências europeias no passado, intenções colonialistas. “As decisões de investimento serão baseadas na análise de projetos, não em imposição política”, afirmou.

O OBOR, cuja estimativa de investimento, segundo o jornal Financial Times, chega a US$ 890 bilhões, deve ser financiado por diversos bancos chineses com o suporte de um novo banco multilateral de desenvolvimento criado especialmente para o projeto, o Asian Infrastructure Investment Bank (AIIB), com capital de US$ 100 bilhões, dos quais quase US$ 30 bilhões foram disponibilizados pela China. O Brasil está entre os dez principais acionistas do banco.

Além disso, Xi Jinping anunciou a criação do Fundo da Rota da Seda, com capital de US$ 40 bilhões. O Novo Banco de Desenvolvimento (NPD), ou Banco dos BRICs, do qual o Brasil faz parte, também deve contribuir com o financiamento.

Segundo Lanxin, o OBOR não é apenas um projeto estratégico do ponto de vista econômico. Também tem o objetivo geopolítico de consolidar a China como um ‘player’ central na Eurásia (o imenso território contínuo que engloba a Europa e a Ásia). “É importante salientar que a maioria dos países envolvidos, inclusive a Rússia, parece convencida de que a intenção da China é pacífica. Ao convencer um número substancial de países a realizar investimentos que resultarão em maior integração, cria-se algo em comum que torna menos provável um confronto militar”, disse.

4. A difícil relação com os Estados Unidos

Embora sustente que o projeto “One Belt & One Road” tenha objetivo pacífico, Lanxin admite que ele também foi pensado por Pequim como alternativa para o caso de, no futuro, ocorrer um conflito na região do Pacífico envolvendo China e EUA. “A ideia de construir uma conexão terrestre até a Europa está relacionada ao temor de que uma eventual guerra no Pacífico bloqueie rotas marítimas essenciais para a China”, disse Lanxin. Atualmente a China é altamente dependente do exterior em energia, alimentos e matérias primas em geral.

A China não admite a independência de Taiwan (República da China, capitalista), disputa com o Japão a soberania sobre algumas ilhas no Pacífico e tem relações complicadas com a Coreia do Sul. Os três países são fortes aliados dos EUA, que prometem protegê-los no caso de uma agressão chinesa.

Os EUA dizem que a China está se fortalecendo militarmente e temem que, no futuro, Pequim tente restringir sua liberdade de navegação no Pacífico, em particular no Mar do Sul da China. “É verdade que o orçamento militar chinês tem crescido sistematicamente, mas não é nada comparado com o norte-americano. Por que a China faria algo que pudesse prejudicar rotas de navegação utilizadas por séculos e séculos?”, perguntou o palestrante.

“As relações sino-americanas vão bem nas áreas comercial, ambiental e há até mesmo um certo nível de interação no aspecto militar. Por que alguns insistem na possibilidade de uma futura guerra entre a China e os EUA?”, continuou. Tanto Pequim como Washington realizam frequentes exercícios militares nas águas do Mar do Sul da China.

O OBOR também pode ser visto como uma resposta da China à Parceria Transpacífico (TPP), acordo comercial entre os EUA e outros 11 países do Pacífico, que por enquanto exclui a China. Para entrar em vigor, o TPP depende de aprovação dos Parlamentos dos países-membros .

5. A recente aproximação com a Europa e a Rússia

De acordo com Lanxin, as relações externas da China passaram por uma reviravolta quando da invasão do Iraque (2003). Na ocasião, EUA e Reino Unido se uniram em defesa de uma ação militar contra o ditador Saddam Hussein, acusado de possuir armas químicas (algo que não foi comprovado posteriormente). Rússia, China, França e Alemanha (os dois últimos principais membros da União Europeia) preferiam o caminho diplomático para convencê-lo a colaborar com as investigações conduzidas pela ONU.

“Naquele momento, Pequim percebeu que o Ocidente não estava unido num bloco monolítico, como costumava acontecer até então. A partir daí surgiu o que eu tenho chamado de uma ‘entente’ (aliança) não-oficial entre Paris, Berlim, Moscou e Pequim”, disse o palestrante.

“Antes, a China não levava a União Europeia muito a sério por considerar confuso o funcionamento do bloco de 28 países. A verdade é que os líderes chineses nunca acreditaram muito no multilateralismo. Mas nos últimos anos passou a acreditar que a UE pode ser útil para seu objetivo de ascender novamente como potência mundial de forma pacífica”, continuou.

De acordo com o palestrante, a relação da China com a Rússia do presidente Vladimir Putin nunca esteve tão boa, com ambos os países adotando posições semelhantes em uma variedade de temas relacionados à Europa, Ásia e Oriente Médio. Também existe complementaridade entre as economias de ambos os países. O que um necessita o outro tem a oferecer, e vice-versa.

“Inicialmente Putin não gostou do projeto (OBOR), pois era a favor de uma União Euroasiática. Mas com a crise da Ucrânia sua ideia praticamente morreu. Então ele passou a apoiar o projeto chinês”, concluiu.

A “culpa” da atual proximidade entre Rússia e China não seria apenas de George W. Bush, que presidia os EUA na época da invasão do Iraque, mas também do presidente Barack Obama. “Para mim é um mistério o que teria levado o governo Obama a alienar ao mesmo tempo Moscou e Pequim. Não quero entrar no mérito de quem está certo ou errado, mas do ponto de vista tático o atual presidente se desviou da tradição norte-americana de tentar ocupar uma posição intermediária entre a Rússia (União Soviética) e a China, jogando com as rivalidades entre os dois países de acordo com os interesses dos EUA. Agora quem está ocupando esta posição é Pequim”, afirmou.

6. Hillary Clinton ou Donald Trump?

Para Lanxin Xiang, o polêmico candidato republicano à Casa Branca é uma incógnita, mas diversos analistas chineses temem a eventual vitória da candidata democrata em 8 de novembro. “Quando Hillary Clinton era secretária de Estado (cargo equivalente ao de ministro das Relações Exteriores), ela sempre se mostrou a favor de enviar mais navios militares e mísseis para a Ásia. Suas posições em relação à China são bem conhecidas”, contou.

“Não conhecemos Trump, mas, retórica à parte, no final das contas ele é um homem de negócios. Talvez seja mais pragmático na relação com a China”.

É bom lembrar que durante a campanha tanto Trump como Hillary têm criticado a Parceria Transpacífico, que não interessa à China e ainda precisa ser ratificado pelo Congresso norte-americano. Mas Clinton, se eleita, provavelmente adotaria uma atitude mais moderada em relação ao acordo, pois ele foi fechado durante o governo Obama, no qual ela teve papel central.

7. América Latina e Brasil

A China, que já está presente na África há muitas décadas, só começou a se interessar para valer pela América Latina mais para o final do século 20 e início do século 21. “Foi quando o presidente Jiang Zemin (que governou de 1993 a 2003) adotou a estratégia de ir até os países que produzem energia, alimentos e minérios (para assegurar o suprimento dessas matérias primas para a China). Naquela época descobrimos que a América Latina tinha um um nível educacional, um know how e uma infraestrutura que os países africanos em geral não tinham. Desde então, é impressionante a rapidez com que a China se envolveu em projetos na região”, explicou Lanxin.

Essa estratégia chinesa coincidiu com o fato de que diversos países latino-americanos eram na época governados por líderes de esquerda, como Luiz Inácio Lula da Silva e Hugo Chávez, que buscavam alternativas à influência dos EUA na região. “Inicialmente os EUA ficaram preocupados, mas como a China evitou qualquer ação na esfera militar e enfatizou apenas o aspecto comercial, deixaram de se opor”, disse.

O Brasil, especificamente, é visto pela China como estratégico para seus objetivos comerciais e diplomáticos não apenas em função do tamanho do território, da economia e da população, mas também por integrar o grupo dos BRICS junto com Rússia, Índia, China e África do Sul.

 


Em 2015, o premiê Li Keqiang visitou o Brasil e anunciou a criação de um fundo com US$ 53 bilhões para investir em infraestrutura, incluindo rodovias, ferrovias, setor aéreo, linhas de transmissão para o setor elétrico e projetos de telecomunicações. Segundo reportagem publicada pela Folha em agosto de 2016, desde janeiro investidores chineses destinaram US$ 10,6 bilhões para aquisições no Brasil, mais do que o dobro dos US$ 5 bilhões registrados no ano passado inteiro. A primeira viagem de Michel Temer como presidente foi justamente para a China, no início de setembro.

“Para a China, o Brasil é a âncora da América Latina. Há muitas ideias e projetos em andamento, inclusive ligando o Brasil a outros países da região, abrindo uma ponte para o Pacífico. Sou muito otimista quanto à relação entre os dois países”, afirmou o palestrante.

8. Abertura política

Segundo Lanxin Xiang, existe atualmente uma pressão por reforma política na China, mas, ao mesmo tempo, o país mostrou nas últimas décadas que é possível manter o sistema e usar a autoridade estatal para lançar um programa de desenvolvimento sério e abrangente. “A abertura política deve ser resultado do sucesso econômico. Então pode ser que ela comece”, disse.

Ele criticou, no entanto, a tentativa do regime chinês de bloquear o acesso à informação em plena era digital. “Hoje todo mundo tem um smartphone na mão e considero pouco sábio tentar controlar a política por meio do controle da internet. Confúcio não concordaria com isso. Ele dizia que tentar impedir as pessoas de se comunicar é a mesma coisa que tentar conter as águas de uma represa depois que ela já estourou. A “great firewall” chinesa não está funcionando”, disse.

“A liderança chinesa gosta de pensar a longo prazo. Espero que pensem a longo prazo neste aspecto também”, concluiu.

 

Otávio Dias, jornalista, é editor de conteúdo da Fundação FHC. Jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres, editor do site estadao.com.br e editor-chefe do Huffington Post no Brasil.