Um ajuste de contas com a história
Fernando Henrique sabia que era preciso reconhecer a violação de direitos humanos durante a ditadura e buscar uma maneira de reparar as vítimas e seus familiares.
Quando promulgou a Constituição Federal de 1988, o deputado Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Nacional Constituinte (1987-88), resumiu as duas décadas de arbítrio em uma frase: “Tenho ódio e nojo à ditadura”. O Brasil vivia então o auge da transição democrática, mas o fantasma do autoritarismo continuava vivo e muito presente.
A ditadura havia sido sofrido sucessivos golpes, com a inequívoca vitória eleitoral do MDB (Movimento Democrático Brasileiro) em 1974; a campanha pela Anistia e a volta dos exilados no final dos anos 1970 e início dos 80; e a campanha das Diretas Já em 1984, que, mesmo derrotada, levou à eleição de Tancredo Neves presidente da República no Colégio Eleitoral em 1985, selando o fim do regime militar.
Foi, no entanto, a promulgação da Constituição Cidadã, como Ulysses apelidou a nova Carta, que consolidou a transição e deu início a um novo período da história política brasileira, caracterizado pela democracia e o Estado de Direito. Mas uma mancha do autoritarismo, uma injustiça não reparada, persistia: era preciso reconhecer a responsabilidade do Estado brasileiro pelas mortes, desaparecimentos e violações de direitos humanos ocorridas durante a ditadura militar (1964-1985).
FHC foi fiador da lei que reconheceu mortos e desaparecidos
Logo após subir a rampa do Palácio do Planalto, em janeiro de 1995, o presidente Fernando Henrique Cardoso trouxe para si a responsabilidade de ser o fiador de uma lei que possibilitasse reparar, ao menos em parte, aquelas injustiças. Em sintonia com o clamor dos familiares dos mortos e desaparecidos foi sancionada em 1995, primeiro ano do governo, a Lei 9.140, base para a definição de todo um processo de reconhecimento da responsabilidade do Estado brasileiro pelas graves violações de direitos humanos e crimes praticados pelos agentes da ditadura.
Em 4 de dezembro de 1995, foi instituída a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), com a finalidade de proceder ao reconhecimento de pessoas mortas ou desaparecidas em razão de suas atividades políticas durante o regime militar; de envidar esforços para a localização dos corpos das vítimas; e de emitir parecer sobre os requerimentos relativos a pedidos de indenização apresentados por seus familiares.
Familiares de desaparecidos não tinham nem atestado de óbito
Uma das injustiças mais gritantes era que, durante a ditadura e até o ano de 1995, os parentes não haviam recebido nem mesmo o atestado de óbito de seus familiares mortos e desaparecidos. Um ato de negação como esse bloqueava diversos outros atos de uma vida civil, como a conclusão de testamentos e o reconhecimento da viuvez, colocando os parentes em uma situação absurda, pois não podiam provar a morte de pais, filhos, maridos, mulheres e irmãos. Sem falar na dor e na angústia de não ter informações oficiais sobre o paradeiro de um membro da família.
Seis meses antes de a lei ser instituída por medida provisória, em maio de 1995, o escritor Marcelo Rubens Paiva cobrou, em um artigo, que o governo recém-empossado se manifestasse sobre o assunto, lembrando inclusive a proximidade entre seu pai, o engenheiro civil Rubens Paiva, deputado federal cassado em 1964, e Fernando Henrique Cardoso. Após anos no exílio, Rubens Paiva retornou ao Brasil em 1969, mas em janeiro de 1971 foi preso por agentes da ditadura, desaparecendo em seguida. Sua morte só foi oficialmente confirmada quarenta anos depois pela Comissão Nacional da Verdade.
FHC assume culpa do Estado por mortes durante a ditadura;
O Globo, Rio de Janeiro – 29 de agosto de 1995
FHC sabia do simbolismo que a criação de uma Comissão de Mortos e Desaparecidos carregava: “Foi algo que me deixou contente e emocionado.” Não se tratava de uma afronta aos militares, tampouco de uma revanche. Era, sim, um ato de justiça em relação às vítimas e de reparação do sofrimento de suas famílias. Para deixar claro o caráter da nova lei, a aplicação das disposições e todos os seus efeitos seriam orientados pelo princípio de reconciliação e pacificação nacional, conforme expresso na Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979, a chamada Lei de Anistia.
“Hoje, como chefe de Estado e de Governo – eleito pelo povo – e como comandante supremo das Forças Armadas, cabe a mim assumir pelo Estado a responsabilidade das transgressões cometidas à Lei e aos direitos humanos. (…) Dói-me até hoje a perda de Rubens Paiva. Dói-me o sorriso triste de meu ex-aluno Vladimir Herzog. (…) Culpado foi o Estado por permitir tortura em dependências suas. (…) É em nome da consciência de que só o Estado de Direito garante a liberdade que eu, ao enviar ao Congresso esta lei, escuso-me, na qualidade de Presidente da República, perante a nação pelos abusos que foram cometidos”, escreveu FHC em pronunciamento preparado para o ato de assinatura da MP que criou a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos.
‘Reparação não é questão política, mas existencial’
Fernando Henrique lembraria posteriormente que a sua disposição em encarar a questão exigia uma condução delicada. No seu livro “A Arte da Política – A História que Vivi” (2006), o ex-presidente conta sobre a conversa que teve com ministros militares durante um jantar, quando lhes comunicou que iria promover a reparação dos crimes da ditadura: “Expliquei que não se tratava de uma questão política, mas de direitos humanos e que, para mim, se revestia até de um caráter existencial”.
Ao final da conversa, relata ele, os ministros não emitiram qualquer comentário ou opinião: “Nem precisava. Era uma decisão já tomada pelo chefe de Estado e cabia a eles receberem-na com naturalidade. Que foi o que aconteceu”.
Nas páginas dedicadas à CEMDP no portal Gov.br, consta o registro de 364 desaparecidos políticos, com seus nomes completos. A comissão, que fazia parte do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), foi extinta em dezembro de 2022, no apagar das luzes do governo Bolsonaro. Em janeiro de 2023, logo após a posse do novo governo Lula, o ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, prometeu recriar a comissão.
Comissão foi o primeiro passo de um longo processo
A CEMDP foi o primeiro passo de um longo processo de reconhecimento das vítimas da ditadura, que culminou com a criação da Comissão Nacional da Verdade pela presidente Dilma Rousseff. Na cerimônia de posse no Palácio do Planalto, em maio de 2012, FHC estava presente, assim como a presidente Dilma e os demais ex-presidentes vivos, José Sarney, Fernando Collor de Mello e Luiz Inácio Lula da Silva, em uma clara demonstração da importância de concluir esse processo. Alguns críticos argumentam que ele ainda não terminou porque os responsáveis pelas violações nunca foram julgados, pois a Lei da Anistia não o permite.
Em novembro de 2014, Fernando Henrique prestou depoimento à Comissão da Verdade e relembrou o momento em que foi aposentado compulsoriamente do cargo de professor catedrático de sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo:
“Eu ganhei a cátedra (de sociologia da USP) em outubro (de 1968). Em dezembro, vem o AI-5. Eu estava em casa, liguei o rádio, ouvi o Gaminha, como nós os chamávamos, lendo como se fosse um grande algoz, e o AI-5 era um fechamento completo. Bom, isso aí vai mal. Quando um dia eu estou indo para a faculdade de carro e ouço no rádio que tinham me cassado, perdido a cátedra, compulsoriamente, não sei o quê. Eu, o Florestan, Octavio Ianni e muitos outros. Na verdade, todos aqueles que a universidade tinha acusado lá atrás de novo foram cassados”.
No mesmo depoimento, FHC reconheceu que sofreu pouco durante a ditadura em comparação com tantos outros brasileiros e brasileiras: “Comparando o que passou comigo com o que aconteceu com milhares de pessoas, não é nada. Hoje, todo mundo virou democrata, naquela época era muito difícil. Qualquer gesto era arriscado e exigia muita coragem”.
Nas décadas de 1950 e 1960, o jovem sociólogo Fernando Henrique Cardoso era apenas um acadêmico, sem ambições políticas. Em 1964, logo após o golpe militar, começou a sofrer intimidações e ameaças, sobretudo por sua amizade e relacionamento com outros intelectuais perseguidos pela ditadura. Diante da possibilidade de ser preso, decidiu se exilar no Chile, com a mulher, a antropóloga e professora Ruth Cardoso, e os filhos. Após cerca de três anos no exílio voltou ao Brasil em 1967, com o intuito de reassumir a pesquisa e a docência na USP. Em 1969, foi sumariamente cassado, quando tinha apenas 37 anos e toda uma carreira acadêmica pela frente.
“Quando jovem, queria ser em primeiro lugar pesquisador e, depois, professor universitário. Por que me tornei político? Porque o regime militar resolveu que eu era subversivo e, sem querer, acabou me empurrando para a política”, disse o ex-presidente e ex-senador em conversa online com os sociólogos José de Souza Martins e Maria Hermínia Tavares de Almeida, por ocasião de seu aniversário de 90 anos, em 2021.
Este texto faz parte da série “FHC: Ação Política”. Por meio de textos, fotos, vídeos e documentos do Acervo da Fundação FHC, abordamos momentos e fatos marcantes da trajetória política e intelectual de Fernando Henrique Cardoso.
Márcio Pinheiro é jornalista com passagens pelo O Estado de S. Paulo, JB e Zero Hora. Autor do livro “Rato de Redação – Sig e A História do Pasquim” (Matrix, 2022).