FHC: Ação Política
21 de setembro de 2023

Em defesa do Ministério da Defesa

Criado no primeiro ano do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, órgão é um símbolo da solidez democrática pelo seu caráter estratégico e por sua amplitude no trato dos mais altos assuntos relativos à segurança da nação.

Apesar de ser um dos órgãos de formação mais recente na história do país, o Ministério da Defesa já era uma ideia antiga dentro do panorama político e militar do Brasil. Pasta de caráter estratégico – criada pela lei complementar n° 97, de 9 de junho de 1999 – o Ministério existia, pelo menos em projeto, há mais de meio século.

As primeiras discussões sobre a criação de um Ministério da Defesa começaram na segunda metade dos anos 1940, com a renúncia do presidente Getúlio Vargas e o fim da ditadura do Estado Novo. A Constituição de 1946, que marcou o retorno à democracia, já citava a formação de um Ministério único que reunisse as Forças Armadas. Porém, na época, a ideia não avançou.

Duas décadas depois, já no regime militar iniciado em 1964, um novo ensaio: em 1967, o primeiro presidente do ciclo militar, Humberto Castelo Branco, assinou o decreto-lei 200, que estimulava a promoção de estudos para elaborar o projeto de lei que previa a criação do Ministério das Forças Armadas. A proposta também não vingou, em grande medida devido a resistências de setores militares contrários a esse tipo de centralização.

Mais tarde, a questão poderia ter avançado durante os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, entre 1987 e 1988, mas isto também não se confirmou. “Não tenho bem claro quais foram os motivos, mas o fato é que este assunto não foi prioritário naquela época. Talvez porque ainda não houvesse um clima propício”, lembra Nelson Jobim, então deputado pelo PMDB do Rio Grande do Sul e parlamentar com intensa atuação nos trabalhos constitucionais. Anos mais tarde, entre 2007 e 2011, Jobim ocupou o cargo de ministro da Defesa do Brasil.

Seria preciso pouco mais de uma década para que o projeto se concretizasse, tornando-se uma das prioridades do início do segundo mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso.

Assinatura de ato de criação do Ministério da Defesa – 10 de junho de 1999

“Vamos marchar, espero, para a tranquilidade na área militar e para a mudança”

A instituição do Ministério da Defesa existia na cabeça de FHC desde sua primeira campanha presidencial, em 1994, como comprovam anotações feitas por ele em dezembro daquele ano, poucos dias após sua vitória nas urnas. No esboço em que registrou como imaginava a montagem de sua primeira equipe ministerial, Fernando Henrique escreveu, como foi reproduzido no primeiro volume de Diários da Presidência – 1995/1996: “Vamos marchar, espero, para a tranquilidade na área militar e para a mudança”. E acrescentou: “Os próprios militares vão definir quando, como e até que ponto convém fazer o Ministério da Defesa, mas eu gostaria de no fim do meu governo, se não puder ser antes, deixar esse assunto absolutamente resolvido, de uma maneira negociada e não imposta”.

Apesar de ter se concedido o tempo de um mandato para a implantação, Fernando Henrique, antes mesmo de tomar posse, sabia que haveria demora na formatação. “O presidente teve um papel fundamental. Desde seu primeiro discurso de posse, quando anunciou a intenção de criar a pasta, até o estabelecimento do ministério, ele foi a peça-chave”, analisa Octavio Amorim Neto, professor titular da Escola de Administração Pública e de Empresas (EBAPE), da Fundação Getúlio Vargas. “Esse não era um tema atraente nem para as Forças Armadas nem para o Congresso nem para o eleitorado. Foi, portanto, uma opção relativamente solitária de um homem de Estado”, acrescenta.

Fernando Henrique tinha noção de que o tema seria delicado, afetaria diversas áreas do governo e da sociedade e exigiria negociações constantes. No começo de fevereiro de 1995, ao fazer um balanço de seu primeiro mês de governo e de seu relacionamento com os ministros, o presidente se questionava em seu diário: “Até que ponto haverá um modelo próprio de Ministério da Defesa no Brasil e em que momento deve ser implantado?”.

FHC: “Eu mesmo quero estar convencido de que o Ministério da Defesa é um avanço, não quero fazer um ministério só porque um setor acredita ser indispensável”.

Ainda no mesmo mês, duas semanas depois do primeiro registro, Fernando Henrique voltaria ao tema, agora numa escala mais prática: “Tive uma reunião com os quatro ministros da Forças Armadas”. E, mostrando ponderação, o presidente admitia: “Se formos devagar, a coisa pode funcionar”. Ao final, na mesma anotação, ele concluía: “Eu mesmo quero estar convencido de que o Ministério da Defesa é um avanço, não quero fazer um ministério só porque um setor acredita ser indispensável”.

> Leia o artigo “As Forças Armadas na Constituição”, escrito por FHC no jornal Zero Hora, em 14 de novembro de 1987

Dois meses depois, em abril, uma cartilha elaborada pelo governo avançava naquilo que seria o modelo do que deveria servir de base para o futuro Ministério da Defesa, tendo em sua estrutura dois princípios fundamentais: a) Os antecedentes culturais: “não é por outro motivo que, ao estudarmos os Ministérios da Defesa de outros países, encontramos como única constante a característica de que não há dois iguais”, constatava o documento, e b) A subordinação ao poder político: reforçando que “apesar de o presidente da República ser o Comandante Supremo das Forças Armadas, é necessário que o emprego das Forças seja, de forma mais perceptível, subordinado a uma política de defesa do Estado, emanada do poder político”.

Em resumo, a primeira proposta era de que os então ministérios militares fossem transformados em órgãos de administração e de preparo das Forças e que o Ministério da Defesa fosse o responsável pelo emprego das Forças. “As conversações foram difíceis. Como ministro da Justiça no início do primeiro mandato de FHC, eu já participava de reuniões. Foram muitos debates. Não existiam manifestações contrárias declaradas por parte de setores militares, mas era preciso conduzir com habilidade”, recorda Jobim. “O formato de Ministério da Defesa aplicado pelos Estados Unidos era o que mais se aproximava daquilo que pretendíamos alcançar”, completa.

Octavio destaca outro aspecto: “O presidente estabeleceu diretrizes, cercou-se de assessores de alta qualidade, criou grupos de estudo, ditou o ritmo do processo político e administrativo, superou cautelosamente grandes obstáculos na área militar e forjou o consenso entre os civis e os militares”.

Toda essa lenta preparação só começaria a ganhar a forma final a partir do primeiro dia de governo do segundo mandato, iniciado em 1999. A prerrogativa inicial estava bem definida: caberia ao novo ministério a tarefa de otimizar o sistema de defesa nacional, formalizar uma política de defesa sustentável e integrar as três Forças, racionalizando as suas diversas atividades.

“Vamos brindar ao nosso encontro com a democracia”

Fernando Henrique recordaria com clareza ainda maior o seu desejo de criar o Ministério da Defesa em entrevista concedida em agosto de 2003 para o livro Democracia e Defesa Nacional – A Criação do Ministério da Defesa na Presidência da República, de Eliézer Rizzo de Oliveira. Já fora do Palácio do Planalto e questionado pelo autor porque a formatação do ministério não fazia parte de seu programa de governo em 1994, tampouco foi citado em seu discurso de despedida do Senado após ser eleito presidente da República, no mesmo ano, Fernando Henrique respondeu que havia, sim, a ideia de criação. Como prova de sua intenção, Fernando Henrique invocou ter sido esse o principal critério utilizado por ele para a escolha dos três ministros militares, Mauro César Pereira, da Marinha, Zenildo Lucena, do Exército, e Mauro Gandra, da Aeronáutica. Todos estavam afinados na mesma posição.

A demora para a implantação, segundo ainda o presidente, foi causada pelo acerto de detalhes específicos. O primeiro, de ordem prática, exigia ajustes no orçamento e uma necessidade de racionalização de custos. Porém, o segundo motivo trazia uma peculiaridade ainda maior: o novo ministério seria o símbolo da democratização. O presidente lembraria quando a situação ficou clara de forma evidente: “Logo no início do governo, eu tive um jantar na casa do ministro Mauro César com todos os ministros militares. Na hora do brinde, eu brinquei: ‘Vamos brindar ao nosso encontro com a democracia, pois estamos aqui o presidente da República e os chefes militares e não tem imprensa à porta nem o Brasil está assustado porque não há mais o menor risco de conspiração ou golpe’”.

> “Deve-se discutir com os militares as funções que lhes cabem e os seus limites” – entrevista de FHC ao jornal O Estado de S. Paulo; 7 de agosto de 1983

“Direitos humanos para mim não é só palavra”

No mesmo jantar em que relatou o clima ameno para a instalação do novo ministério, o presidente também precisou ser hábil para abordar um assunto que fatalmente entraria como prioridade na pauta do órgão que estava sendo montado. Após a refeição, quando se encaminhavam para a sala de estar, Fernando Henrique tocou no assunto diante dos demais ministros: “Quero dizer que vou avançar na reparação dos punidos. Direitos humanos para mim não é só palavra”.

O recado do presidente foi bem assimilado. A pouca resistência que houve nesse episódio partiu de militares da reserva, que temiam que o surgimento da nova pasta estimulasse um clima de revanchismo e de retaliação com relação aos abusos cometidos durante o período da ditadura. “Só num caso, um general de Pernambuco fez um discurso contrário. Eu pedi ao ministro Zenildo que o afastasse e assim foi feito”, lembraria Fernando Henrique na entrevista para o livro. “Outra coisa a comentar sobre o Ministério da Defesa é o seguinte: os militares não gostavam do argumento de que tinha que haver Ministério da Defesa para se demonstrar a direção civil e a lealdade deles: ‘nossa lealdade é através do presidente da República e ela está demonstrada’, diziam. E é verdade”, garantiu Fernando Henrique na entrevista a Eliézer.

Logo no início de seu segundo mandato, o presidente nomeou um civil, o ex-senador capixaba Élcio Alvares, como ministro Extraordinário da Defesa. Ele teria a missão de criar e implantar o novo Ministério da Defesa do Brasil. Mineiro de Ubá, mas com toda a sua trajetória política construída no Espírito Santo, Élcio Alvares era um parlamentar experiente, além de ser um homem com conhecimento político-administrativo (havia sido governador do Espírito Santo entre 1974 e 1978) e com bom trânsito junto aos mais variados setores. Pesava ainda a seu favor a proximidade pessoal que ele tinha com o presidente quando os dois foram colegas no Senado.

“Era fundamental que o cargo fosse ocupado por um civil, caso contrário não faria o menor sentido”, explica Jobim. “Um civil à frente do Ministério da Defesa possui a virtude de ser equidistante em relação às três Forças Armadas. Essa equidistância gera maior eficácia e eficiência na condução da política de defesa”, completa Octávio.

Favorecido pela opinião pública e compreendido pelos militares, Fernando Henrique finalmente sancionou, em 10 de junho de 1999, o projeto de lei do Ministério da Defesa. O novo órgão substituía oficialmente os antigos Ministério da Marinha, Ministério do Exército e Ministério da Aeronáutica, que foram transformados em Comandos do Ministério da Defesa. O Estado-Maior das Forças Armadas foi extinto na mesma data. O ministro da Defesa e os comandantes militares passariam a formar um conselho para a tomada de decisões relativas à defesa e à segurança do país no mais alto nível, sempre em sintonia com o presidente da República, comandante em chefe das Forças Armadas.

> Leia o Livro de Transição sobre o Ministério da Defesa – 2002

Por denúncias veiculadas na imprensa que envolvia sua assessora direta, o ministro Élcio Alvares teve dificuldade de permanecer no cargo, sendo substituído em janeiro de 2000 por Geraldo Quintão, que ocupava desde o governo Itamar Franco a Advocacia-Geral da União. Assim como Élcio Alvares, Quintão foi escolha pessoal do presidente e conduziu o Ministério da Defesa até o fim do governo FHC, concluído em 1º de janeiro de 2003, com a posse de Luiz Inácio Lula da Silva.

Nas anotações de Fernando Henrique – feitas no calor dos acontecimentos de quando o Ministério da Defesa foi efetivamente criado – ficaria registrada essa lembrança, de forte conotação pessoal: “Fiz um discurso emocionado, recordando a quantidade imensa de antepassados meus que serviram ao Estado, desde meu bisavô até outros militares”. E concluiu: “Fiz a defesa, portanto, de uma política democrática e inteligente e não troglodita e autoritária, como neste momento querem de mim”.

 

Este texto faz parte da série “FHC: Ação Política”. Por meio de textos, fotos, vídeos e documentos do Acervo da Fundação FHC, abordamos momentos e fatos marcantes da trajetória política e intelectual de Fernando Henrique Cardoso.

Márcio Pinheiro é jornalista com passagens pelo O Estado de S. Paulo, JB e Zero Hora. Autor do livro “Rato de Redação – Sig e A História do Pasquim” (Matrix, 2022).