O Brasil no centro de um debate mundial
Temas relacionados ao meio ambiente estiveram em evidência e foram uma das marcas positivas dos dois mandatos do presidente Fernando Henrique Cardoso.
Nos últimos cinco anos do século 20, início do governo Fernando Henrique, a questão ambiental vivia um momento crucial. Assunto emergente na pauta mundial, os temas relacionados ao meio ambiente estavam em evidência e colocavam o Brasil no centro de uma discussão global. Recentemente, dois episódios haviam sido decisivos para ampliar o debate.
O primeiro foi o surgimento de um ministério para tratar do tema de forma específica. Uma década antes, em 1985, o presidente José Sarney havia sido o responsável por criar o Ministério do Desenvolvimento Urbano e do Meio Ambiente, transferindo para a nova pasta as atribuições que até então pertenciam à Secretaria Especial de Meio Ambiente, vinculada ao Ministério do Interior.
“O governo Sarney teve o desafio de encarar temas polêmicos e delicados, como a questão da Amazônia e, principalmente, o assassinato de Chico Mendes, uma liderança importante na região”, destaca Izabella Teixeira, bióloga e servidora pública, que posteriormente seria ministra do Meio Ambiente de 2010 a 2016. Atualmente, trabalhando com consultoria privada e integrando conselhos de instituições, Izabella acrescenta outro ponto. “O Brasil ganhou ainda mais relevância com o surgimento do IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), criado em 1989. Além disso, o fato de o Brasil ter se oferecido para sediar a Rio-92 consolidou a diplomacia brasileira na área da diplomacia ambiental”, reforça Izabella.
Porém, o que poderia parecer um avanço não se confirmaria logo a seguir. O retrocesso se daria a partir da posse de Fernando Collor de Mello. Em 1990, a pasta foi esvaziada, rebaixada à secretaria e vinculada à Presidência da República. O órgão só voltaria a ter relevância pouco mais de dois anos depois, em novembro de 1992, já no governo Itamar Franco, quando o novo presidente recriou o ministério.
É bem provável que Itamar tenha tomado esta decisão estimulado pela imensa repercussão da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, também conhecida como Eco-92 ou ainda Rio-92. Já nos estertores do governo Collor (que enfrentava um processo de impeachment), durante duas semanas de junho de 1992, líderes de todo o planeta se reuniram no Rio para discutir os desafios ambientais mundiais. A intenção de todos os participantes desse encontro era introduzir a ideia do desenvolvimento sustentável, além de propostas para um modelo de crescimento econômico menos consumista e mais adequado ao equilíbrio ecológico. O encontro reuniu, no Rio de Janeiro, chefes de estado e representantes de 178 países.
Assim, às vésperas do começo do governo Fernando Henrique, o ministério estava prestigiado e com poderes ampliados. Ao assumir, em 1995, o novo presidente tinha noção dos desafios que enfrentaria. Em princípio, o nome mais indicado para o cargo de ministro do Meio Ambiente parecia ser o de Fábio Feldmann. Deputado federal por São Paulo em terceiro mandato, Feldmann era advogado e ambientalista, um dos fundadores da Fundação SOS Mata Atlântica, da qual foi também o primeiro presidente, e, além disso, chefe da delegação brasileira dos parlamentares na Rio-92 e relator adjunto da Revisão Constitucional para as matérias ambientais. Mas isso não se confirmou. “Dormi ministro e acordei secretário em São Paulo”, recordou Feldmann quase 30 anos depois. “Embora houvesse uma aspiração legítima do Fábio Feldmann de ser ministro do Meio Ambiente, a lista de paulistas estava crescendo”, registrou Fernando Henrique em seu diário. Isto levou o presidente a fazer um arranjo que levava em consideração os aspectos partidários e regionais.
Sensibilidade para levar de modo adequado toda a matéria do meio ambiente
Desse modo, foi indicado o pernambucano Gustavo Krause. Ex-governador de seu estado, com passagem pela Câmara dos Deputados, Krause havia assumido, em outubro de 1992, o Ministério da Economia, Fazenda e Administração. Foi a primeira indicação de Itamar Franco para o cargo, que pouco tempo depois, em 1993, seria ocupado por Fernando Henrique. De volta ao exercício do mandato de deputado federal, Krause sairia candidato a governador por Pernambuco nas eleições de 1994, sendo derrotado por Miguel Arraes, do PSB. Próximo ao presidente eleito – e mais ainda ao vice-presidente Marco Maciel, seu conterrâneo – Krause chegou a ser sondado para ocupar a Secretaria de Desenvolvimento Regional, cargo que recusou.
Porém, logo a seguir, aceitou assumir o cargo de ministro, com a pasta novamente rebatizada. Agora seria Ministério do Meio Ambiente, dos Recursos Hídricos e da Amazônia Legal. “Krause é brilhante. Até agora conversei superficialmente com ele sobre uma questão que, para mim, é fundamental: a da irrigação. Creio que ele terá sensibilidade para levar de modo adequado toda a matéria do meio ambiente”, anotou Fernando Henrique em seu diário em janeiro de 1995, mês em que tomou posse na presidência.
Em sua gestão no ministério, Krause criticou o desperdício de recursos em obras hídricas do Nordeste, defendendo a coordenação de iniciativas entre o governo federal e os dos estados e municípios na definição de obras referentes à sua pasta. Outra questão delicada surgida na mesma época foi quando o Prodes/Inpe registrou o maior índice de área desmatada desde 1988, com mais de 29 mil quilômetros quadrados. Em resposta, o governo elevou a área de reserva legal dos imóveis rurais na Amazônia de 50% para 80% e proibiu o corte de mogno e virola por dois anos, limitando a exploração madeireira, uma das atividades responsáveis pelo desmatamento na região.
Preocupado em reduzir o desmatamento na Amazônia, Krause sugeriu à iniciativa privada o uso de dirigíveis para o transporte de toras de madeira e minérios, além de estreitar laços entre o seu ministério e o das Relações Exteriores, ocupado pelo embaixador Luiz Felipe Lampreia, com a intenção de captar recursos externos para projetos de interesse ambiental, tais como o Programa de Proteção da Mata Atlântica e das Florestas Tropicais no Brasil.
O interesse do presidente Bill Clinton
Mesmo sem nunca ter assumido o ministério ou qualquer cargo em nível federal, Feldmann permaneceu sendo um interlocutor importante para as questões ambientais. “Fernando Henrique e eu sempre tivemos relações próximas e sei que ele me ouvia bastante quando queria saber mais sobre algum aspecto ligado ao tema”. Feldmann nota que foi durante este período que o Brasil, no âmbito internacional, passou a ter uma participação ativa na consolidação do Protocolo de Kyoto, o acordo firmado entre os países signatários da Convenção das Nações Unidas sobre Mudança do Clima visando reduzir a emissão de gases do efeito estufa. “Outra pessoa com quem o Fernando Henrique conversava muito sobre este tema era com o Bill Clinton, presidente dos Estados Unidos”, revela Feldmann, que foi membro oficial da delegação brasileira nas conferências.
Na ocasião, os países desenvolvidos também se comprometeram a financiar a adoção de tecnologias “limpas” pelos países em desenvolvimento. Internamente, o governo criou o Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas para realizar estudos, orientar o presidente e mobilizar a atenção da sociedade, diante do agravamento do fenômeno identificado em sucessivos relatórios. É neste contexto que o IBAMA se afirma. Programas internacionais se consolidaram e a questão socioambiental passou a fazer parte da agenda do governo. Nesse cenário, importantes lideranças ambientalistas emergiram.
No segundo governo de Fernando Henrique, em decorrência de uma reforma ministerial promovida por ocasião do término do primeiro mandato presidencial, Gustavo Krause foi substituído no Ministério do Meio Ambiente pelo deputado federal José Sarney Filho (PFL-MA). “Apesar de não ser uma liderança identificada de imediato com a causa ambientalista, Sarney Filho havia tido um papel importante durante os debates da Constituinte”, conta Feldmann.
O país alcança um protagonismo internacional
Entre os legados importantes nos dois mandatos de Fernando Henrique ressaltados por Izabella e por Feldman está a capacidade que o governo teve de engajar as diferentes esferas da sociedade no debate. Estabeleceu-se um diálogo entre o governo e a sociedade civil, a iniciativa privada e, principalmente, com os cientistas que deram uma nova dimensão ao tema das mudanças climáticas. “Todos entendiam a importância de uma discussão sobre o tema das mudanças climáticas”, ressalta Feldmann.
Em novembro de 2000, quando fez seu discurso na reunião do Fórum de Mudanças Climáticas, o presidente ressaltou a importância da realização do encontro. “É uma perspectiva, crescentemente centrada sobre os impactos dessas questões, sobre o Brasil, sobre a sociedade brasileira e, ao mesmo tempo, um mecanismo que este fórum constitui também, para permitir que nós possamos ter uma posição brasileira diante das discussões que vamos enfrentar”, disse Fernando Henrique. “Por isso mesmo, nós temos aqui, nesta reunião, ministros, representantes de agências governamentais, empresários, ONGs, pessoas ligadas às Universidades e personalidades que têm a ver com a questão climática, direta ou indiretamente”.
Fernando Henrique acrescentou: “Recordo-me que a liderança do Brasil, desde 92, foi forte. Mas em Kyoto foi bastante forte. E creio que em mais de uma oportunidade o presidente Bill Clinton telefonou para mim para pedir que eu interferisse junto às nossas delegações, para que chegássemos a um entendimento, a que chegamos. Entendimento que foi, me parece, bastante positivo”.
Ainda dentro dessa perspectiva global, Feldmann foi designado, em 2002, para ser o coordenador das iniciativas brasileiras de preparação para a Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável, que foi realizada em agosto do mesmo ano na cidade de Joanesburgo.
“Todos entendiam a importância de uma discussão sobre o tema das mudanças climáticas”, ressalta Feldmann.
Tanto Izabella quanto Feldmann ressaltam a importância do Programa Áreas Protegidas da Amazônia (Arpa), criado em 2002 por meio de um inovador arranjo entre governo federal, órgãos estaduais e instituições privadas e a sociedade civil. O Arpa tem o objetivo de promover a conservação e a proteção permanente de 60 milhões de hectares ou 15% da Amazônia brasileira – uma área maior que a Alemanha – e é considerado o maior programa de conservação de florestas tropicais do mundo. “O prestígio adquirido pelo Brasil desde 1992 fez do país uma referência mundial para tratar do tema do meio ambiente, com um protagonismo externo muito maior e com uma abordagem mais ampla ao que o assunto tem internamente”, avalia Feldmann.
Decisão estratégica na Amazônia
Merecem ainda destaque outros pontos responsáveis por avanços durante os dois mandatos do presidente Fernando Henrique Cardoso, como a Lei dos Crimes Ambientais, de número 9.605, de fevereiro de 1998, que dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente; e a Lei 9.985, promulgada em julho de 2000, que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza.
Também em julho de 2000, a mesma lei previa a criação do Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque, localizado nos Estados do Amapá e do Pará, com o objetivo de assegurar a preservação dos recursos naturais e da diversidade biológica, bem como proporcionar a realização de pesquisas científicas e o desenvolvimento de atividades de educação, de recreação e turismo ecológico.
Cabe ressaltar ainda outro ponto estratégico: o Sistema de Vigilância da Amazônia (SIVAM). Projeto elaborado pelos órgãos de defesa do Brasil, com a finalidade de assegurar o espaço aéreo da Amazônia, o SIVAM atende a um antigo anseio de efetivar a presença das Forças Armadas brasileiras na Amazônia, com a finalidade de fazer frente às manifestações de líderes internacionais contra os direitos do povo brasileiro sobre esta região. Assim, as Forças Armadas, em parceria com pesquisadores civis da região, propuseram a construção de uma ampla infraestrutura de apoio à vigilância aérea e comunicação na região amazônica. Também faz parte desta infraestrutura a integração com o satélite brasileiro de sensoriamento remoto, que permite fiscalizar o desmatamento na Amazônia.
Planejado desde os anos 1980, durante o governo Sarney, o SIVAM foi finalmente inaugurado em 25 de julho de 2002 pelo Presidente Fernando Henrique.
Este texto faz parte da série “FHC: Ação Política”. Por meio de textos, fotos, vídeos e documentos do Acervo da Fundação FHC, abordamos momentos e fatos marcantes da trajetória política e intelectual de Fernando Henrique Cardoso.
Márcio Pinheiro é jornalista com passagens pelo O Estado de S. Paulo, JB e Zero Hora. Autor do livro “Rato de Redação – Sig e A História do Pasquim” (Matrix, 2022).