Debates
18 de fevereiro de 2014

Egito: a democracia ainda tem uma chance?

O jovem cientista político egípcio Ashraf El-Sherif esteve na Fundação FHC e analisou as rápidas e contraditórias mudanças pelas quais vem passando o seu país desde o início de 2011.

Por quase uma hora, o jovem cientista político egípcio Ashraf El-Sherif prendeu a atenção de todos os que estávamos no auditório da Fundação FHC no último dia 18 de fevereiro. Com muita informação, sólida bagagem acadêmica e sentindo-se à vontade para falar sem restrições e receios, ele analisou as rápidas e contraditórias mudanças pelas quais vem passando o seu país desde o início de 2011: a queda de Hosni Mubarak, em fevereiro daquele ano, em meio a protestos populares contra o Estado autoritário por ele comandado ao longo de três décadas; a eleição de um governo da Irmandade Muçulmana, em junho de 2012, chefiado por Mohammed Mursi; e a sua derrubada, em julho de 2013, por um golpe militar apoiado por uma onda de protestos populares tão amplos quanto os que haviam levado ao fim a ditadura de Mubarak, pouco mais de dois anos antes.

De volta para o passado autoritário?

Com o retorno dos militares ao poder, agora liderados pelo general Abdul Al-Sisi, a pergunta que se coloca no Egito é se o país está de volta ao passado autoritário ou poderá avançar em direção a um regime mais democrático no futuro previsível. Não por acaso, demos ao seminário o título “Egito: a democracia ainda tem uma chance?”.

El-Sherif se disse cético em relação à possibilidade de o Egito construir um regime democrático no curto prazo, mas revelou maior otimismo em relação a essa possibilidade no futuro mais distante. O apoio ao novo governo das Forças Armadas, a seu ver, é instável e pode se revelar transitório. Para consolidar-se no poder, os militares teriam de se mostrar capazes de reformar um Estado ineficiente e corrupto e colocar o país no caminho do desenvolvimento econômico e social. Isso, porém, exigiria enfrentar privilégios profundamente arraigados no Estado egípcio desde os anos 50, quando Gamal Abdul Nasser, inaugurou um regime militar ditatorial, em substituição à monarquia. O cientista político vê o “moderno” Estado egípcio como um conjunto de feudos político-burocráticos, que jamais prestou contas à sociedade e que, com o passar dos anos, perdeu grande parte de sua própria unidade interna, a despeito do comando militar sobre as estruturas de poder. A “revolução árabe” no Egito expressou a falência desse Estado autoritário e incapaz de promover o desenvolvimento do país. Abriu-se então um período de grande instabilidade política e incerteza sobre o futuro.

Essas duas características devem continuar a definir a situação do Egito, frisou El-Sharif. Ele não acredita que o general Al-Sisi tenha condições para promover a auto-reforma do velho estado, eliminando privilégios usufruídos principalmente pelas próprias Forças Armadas, que controlam setores inteiros da economia do país. Já o apoio popular que angariou desde o golpe de julho de 2013 pode reduzir-se dramaticamente à medida que as dificuldades socioeconômicas persistam e a memória da má experiência com o breve governo da Irmandade Muçulmana se distancie no passado.

 O medo se espalha no Egito

A principal fonte de legitimidade do novo governo é o medo. Esse sentimento se espalhou pela população na esteira da ascensão e queda do governo de Mohammed Morsi. A Irmandade Muçulmana se elegeu com a promessa de um islamismo moderado e uma gestão pública eficiente e comprometida com a melhoria de vida da maioria da população. Na prática, revelaram-se menos moderados e mais incompetentes do que se diziam. Com isso, perderam apoio na sociedade, cujas expectativas eram mais altas do que a capacidade de qualquer governo para atendê-las no curto prazo. Sem condições de responder às aspirações destapadas pela “primavera árabe”, os Irmãos adotaram iniciativas que apontavam para a islamização do Estado e da sociedade no Egito. A opinião pública voltou-se contra eles. El-Sherif estima que, dos 17 milhões de eleitores que votaram em Morsi no segundo turno das eleições presidenciais, mais da metade não tinha vinculação com a Irmandade. Sem a defesa ativa desse eleitor muçulmano comum e com a rejeição das classes médias urbanas, sobretudo no Cairo, o primeiro governo islâmico do Egito chegou ao fim. Destituída a Irmandade do poder, a maior fonte de medo agora é o terrorismo islâmico radical, que se fortalece e vem produzindo atentados a gasodutos, instalações policiais e, mais recentemente, a turistas estrangeiros. Paradoxalmente, e a despeito de seus objetivos declarados, esses grupos são os maiores aliados do governo, na medida em que justificam a repressão ampla e duradoura adotada como política de Estado pelas Forças Armadas.

Inicialmente, o golpe militar recebeu aplausos mesmos dos setores mais liberais, como o menor dos males. O apoio inicial das classes médias urbanas, porém, está se reduzindo ante a escalada de medidas repressivas adotadas pelo novo governo militar. Em muitos aspectos, afirmou El-Sherif, a situação atual é pior do que a vivida no período de Mubarak. O principal alvo da repressão é a Irmandade Muçulmana, cujas maiores lideranças foram presas ou forçadas ao exílio para escapar à prisão. O alcance da mão pesada do Estado, no entanto, é muito mais estendido. A imprensa tornou-se totalmente obediente ao governo, o Judiciário idem, acusações falsas são fabricadas contra jornalistas, intelectuais e políticos, ordens de prisão são expedidas aos milhares pelo procurador geral.

Trata-se de um governo quase fascista, mas um fascismo sem os recursos para se transformar em um sistema estável de poder, segundo El-Sherif. Não fossem os mais de US$ 20 bilhões recebidos de países do Golfo Pérsico, o Egito estaria quebrado, sentenciou. Além disso, a sociedade egípcia politizou-se muito nos últimos três anos. Se a apatia foi a norma no passado, hoje o engajamento político é corriqueiro. Ao contrário do período de Mubarak, e antes dele Anwar Sadat, o novo governo militar é de um autoritarismo mobilizador, que convoca a população a apoiá-lo. Nesse sentido, o general Sisi evoca de alguma maneira a lembrança de Nasser. Ao apostar na mobilização, ao invés da apatia, o atual governo mantém alta a temperatura social do país. Isso pode dificultar a sua consolidação, advertiu El-Sherif, dadas as dificuldades da situação econômica e a instabilidade política.

Cenários de um futuro incerto

Passando da caracterização do governo a projeções sobre o futuro político do Egito, o cientista político esboçou alguns cenários possíveis: a consolidação de um regime autoritário mobilizador quase fascista; o retorno da Irmandade Muçulmana ao poder; a transição para um regime democrático e a desintegração do país. O primeiro seria improvável pelas razões já apontadas. O segundo, idem. Ele tampouco acredita na fragmentação do país, onde não existem conflitos étnicos, como na Síria, ou tribais, como na Líbia. E avaliou como improcedente a tentativa de entender o processo político egípcio comparando-o às transições democráticas na América Latina. No Egito, a seu ver, o desafio é muito mais profundo, pela virtual inexistência de experiências e instituições democráticas na história daquele país.

O mais provável, concluiu El-Sherif, é que, depois de uma fase inicial de intensa repressão, e uma vez resolvida a questão-chave sobre a eleição do novo presidente, o governo eleito busque alguma forma de compromisso com as alas mais moderadas da Irmandade Muçulmana e com os setores liberais da classe média urbana. Nada disso é simples, reconhece, a começar pela decisão sobre quando convocar eleições e sobre  quem deve ser o candidato do governo. O general Sisi é a principal liderança político-militar e estaria virtualmente eleito, pela popularidade de que desfruta no momento e pelo controle que o Estado exerce sobre a vida política. Ocorre que ainda restariam dúvidas, entre as Forças Armadas egípcias e seus aliados no Golfo Pérsico, sobre a conveniência de os militares voltarem a assumir diretamente as rédeas do poder (a hipótese de um civil confiável não está descartada). Ainda mais complicado será um eventual compromisso com a Irmandade Muçulmana e com os setores liberais da classe média urbana (ante a repressão desencadeada contra os Irmãos é difícil esperar que os moderados prevaleçam no futuro previsível). Apesar dessas dificuldades, El-Sherif crê que algum compromisso tornar-se-á inevitável, uma vez que a Irmandade não será eliminada do mapa político do Egito (a organização tem profundas e estendidas raízes na sociedade) e os setores liberais de classe média não aceitarão a simples reintrodução de um regime autoritário depois da experiência “revolucionária” dos últimos anos. Além disso, o país depende da vultosa ajuda militar dos Estados Unidos. Os americanos, cuja influência, embora enfraquecida, ainda tem peso nas decisões das Forças Armadas egípcias, preferem um compromisso que permita estabilizar o país à consolidação de um regime altamente repressivo.

Para El-Sherif, o abrandamento da repressão e a recuperação de um nível razoável de liberdades civis e políticas poderão criar o terreno para o fortalecimento de forças políticas genuinamente democráticas no Egito no longo prazo. Recorrendo à história europeia do século XIX, nosso convidado estabeleceu um paralelo com as revoluções democráticas que irromperam em vários países do velho continente em 1848. Conhecida como a Primavera dos Povos, essa onda revolucionária foi estancada por forças conservadoras, mas deixou frutos que vieram a germinar ao longo da primeira década do século XX. El-Sherif torce para que a história se repita no Egito, quem sabe sem ter de esperar tanto.