Das Ruas ao Colégio Eleitoral: a reconquista da democracia
Entenda como a campanha das Diretas Já mobilizou milhões de brasileiros e revelou Fernando Henrique como um hábil negociador na eleição indireta de Tancredo Neves.
Debilitada e desacreditada, a ditadura brasileira entrava em 1984, seu último ano, simbolizada por um governo frágil e confuso. À frente, um general indeciso, capaz de lutar pela prorrogação de seu mandato ao mesmo tempo que pedia que os brasileiros o esquecessem. Iniciada duas décadas antes, a trajetória de cinco governos militares se esgotara e o país afundava numa grave crise política e econômica.
Era preciso reinventar a democracia brasileira.
Nesse processo, dois nomes se destacavam. Ulysses Guimarães e Tancredo Neves. O primeiro, deputado por várias legislaturas desde 1947 e presidente do PMDB, à época o maior partido de oposição. O segundo, protagonista de movimentos políticos desde o governo de Getúlio Vargas, de quem fora ministro da Justiça, e, naquele começo de 1983, governador recém-empossado de Minas Gerais. Fernando Henrique Cardoso, que havia assumido o cargo de senador da República poucos meses antes, era próximo de ambos.
Eleições presidenciais de 1985; FHC, Tancredo Neves (candidato a presidente da República)
e Franco Montoro (governador – SP/PMDB); 01/12/1984 (presumida)
De Ulysses, a ligação vinha pelas bases paulistas e pelo gosto por acordos políticos. De Tancredo, a união se dava pela habilidade como negociador e pelo estilo moderado. Como coadjuvante dos dois maiores líderes oposicionistas do país na época, Fernando Henrique daria uma nova dimensão ao seu primeiro mandato como senador pelo Estado de São Paulo, acrescentando à sua capacidade de diálogo com os quartéis o papel de um dos fiadores de uma transição sem traumas.
O ano de 1983 mudaria tudo na vida brasileira. Nem bem eram abertos os trabalhos no Congresso Nacional na nova legislatura e Dante de Oliveira, um deputado alto e pouco conhecido do PMDB do Mato Grosso, circulava pelos corredores e gabinetes da Câmara dos Deputados à frente de uma ideia tão genial quanto de imediato quase inexequível: tornar diretas as próximas eleições presidenciais, previstas para 1985.
Em paralelo à busca do jovem deputado pelas assinaturas necessárias para que seu projeto de emenda à Constituição tramitasse, as ruas de todo o país foram tomadas por multidões. Começava a surgir a maior mobilização popular da história do Brasil, que cresceu de forma espontânea, pois os brasileiros estavam fartos de não poderem escolher seu presidente, mas contou com o decisivo apoio de governadores que se opunham à ditadura, como Franco Montoro (SP) e Leonel Brizola (RJ), assim como de sindicatos, entidades, personalidades da sociedade civil e a classe artística em peso.
> A liderança política de Franco Montoro – por Fernando Henrique Cardoso
Em pouco mais de quatro meses, as capitais brasileiras veriam brotar passeatas e comícios que atraíam milhões de pessoas com camisetas amarelas e carros com adesivos onde se lia “Eu quero votar pra presidente”. A campanha das Diretas Já! tomou da Constituinte a primazia como bandeira oposicionista. “Mudou, mudou muito. As diretas traziam uma visão mais política, de quem está na luta. A outra era mais acadêmica”, reconheceria Fernando Henrique em entrevista ao ex-deputado Domingos Leonelli, autor de Diretas Já – 15 Meses que Abalaram a Ditadura.
“Eles não entenderam nada”
Perplexo, o governo ficara paralisado, primeiro subestimando o movimento, depois tentando desacreditá-lo. Em dessintonia com as ruas, a Rede Globo também desmerecia o caráter político dizendo que as multidões se formavam para ver os artistas. “Eles não entenderam nada”, avaliou Fernando Henrique em depoimento concedido mais de três décadas depois. “Não era o povo que ia ver os artistas. Eram os artistas que se juntavam ao povo”.
Assim, o longo dia 25 de abril de 1984 começaria às 9h com a instalação da sessão em que a Câmara dos Deputados votaria pela aprovação ou rejeição da Emenda Dante de Oliveira. Por se tratar de uma emenda constitucional, eram necessários votos favoráveis de dois terços da Casa (320 deputados) para que a proposta seguisse para o Senado. Apesar de toda a mobilização popular, o resultado da votação foi decepcionante: 298 deputados a favor; 65 contra; 3 abstenções e 113 ausências ao plenário.
Marcada por incidentes, ameaças, blefes e ausências, a sessão se destacaria pela qualidade dos muitos discursos. Num deles, Fernando Henrique homenagearia o então recentemente falecido senador Teotônio Vilela, colocando-o no mesmo patamar de Ulysses, e conclamaria à união de seu partido em torno de uma bandeira. “Exorto todos os presentes no sentido de que estas duas figuras que hoje balizam o caminho do PMDB sejam o lume que oriente nosso partido”.
“Temos a responsabilidade histórica de tornar ato aquilo que já é na vontade do povo, a exclamação, o grande brado contido na expressão: eleições diretas já”, dizia FHC.
Fernando Henrique também demonstraria otimismo, dizendo: “Temos a responsabilidade histórica de tornar ato aquilo que já é na vontade do povo, a exclamação, o grande brado contido na expressão: eleições diretas já”. E, esperando o pior – que se confirmaria já na madrugada do dia 26, com a emenda sendo derrotada por apenas 22 votos a menos do que o necessário – Fernando Henrique já sinalizava aos governistas: “Espero e exorto o PDS (partido que até então apoiava o regime militar) a que se junte a nós e que formemos aqui e agora aquela grande força da democracia, que é o Parlamento”.
Mesmo derrotada, a emenda das Diretas havia feito muito para acelerar o fim do regime militar. “Nós ainda vamos ganhar”, previu um exausto Ulysses ao término da sessão. O otimismo do velho parlamentar se confirmaria com a emenda derrotada transformando-se em embrião dos próximos acontecimentos na política brasileira: a decisão de Tancredo Neves de concorrer à Presidência da República mesmo em eleição indireta – enfrentando o candidato oficial, Paulo Maluf –, a formação da dissidência no PDS, dando origem à Frente Liberal (como previa o apelo lançado por Fernando Henrique) e a vitória do mesmo Tancredo no Colégio Eleitoral no começo do ano seguinte.
Comício em prol da campanha Tancredo Já; São Paulo (SP), 1985
Fernando Henrique participaria das negociações para a formação da aliança entre o PMDB e a Frente Liberal, se envolveria na campanha vitoriosa de Tancredo, teria peso na escolha dos possíveis ministros e se credenciaria como uma das mais fortes lideranças do círculo próximo do presidente eleito. A história mudaria de rumo na véspera da posse, em 14 de março de 1985, com a internação, às pressas, de Tancredo Neves, que acabou morrendo de infecção generalizada 39 dias depois. Até hoje não se sabe a real causa de sua longa agonia.
Com o presidente eleito hospitalizado na véspera da tão aguardada posse, as articulações invadiriam a madrugada, com Ulysses e Fernando Henrique negociando com o então ministro-chefe da Casa Civil, João Leitão de Abreu, a posse do vice José Sarney como presidente interino – o que acabou acontecendo – até que Tancredo se recuperasse – o que jamais aconteceria.
Com a morte de Tancredo, em 21 de abril de 1985, o maranhense José Sarney – um dos antigos apoiadores do regime que rompeu com os militares para apoiar Tancredo –tornou-se o primeiro presidente civil desde 1964, colocando fim à ditadura. Fernando Henrique tornava-se situação, sendo indicado líder do governo no Senado Federal.
Nos cinco anos seguintes (tempo que durou o mandato de Sarney), o senador paulista aumentaria ainda mais seu protagonismo, em especial durante os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988), cujos trabalhos culminaram com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil em 5 de outubro de 1988.
Os desafios seguintes, sobre os quais trataremos em outros textos da série FHC: Ação Política, seriam consolidar a democracia brasileira e colocar o país no rumo do desenvolvimento social e econômico.
Leia também:
O presidente segundo o sociólogo: entrevista de Fernando Henrique Cardoso a Roberto Pompeu de Toledo
Ainda as diretas – artigo de FHC na Folha de S. Paulo em 15 de março de 1984
Este texto faz parte da série “FHC: Ação Política”. Por meio de textos, fotos, vídeos e documentos do Acervo da Fundação FHC, abordamos momentos e fatos marcantes da trajetória política e intelectual de Fernando Henrique Cardoso.
Márcio Pinheiro é jornalista com passagens pelo O Estado de S. Paulo, JB e Zero Hora. Autor do livro Rato de Redação – Sig e A História do Pasquim.