Política e Estratégia Nacional de Defesa, hora de conversar a respeito
Um diálogo em torno de uma política de Estado que deve servir de norte para o Brasil para além dos limites dos mandatos presidenciais.
A sociedade brasileira e seus representantes no Congresso Nacional não identificam ameaças externas ao país e têm sido omissos na discussão sobre os rumos da defesa nacional. O alerta foi feito pelo ex-Ministro da Defesa Raul Jungmann (2016-2018), um dos civis que mais entende de assuntos militares no país, e por dois altos oficiais da reserva da Marinha e da Aeronáutica, neste webinar realizado pela Fundação FHC.
“Se não houver efetiva participação da sociedade civil e da elite política, leia-se deputados e senadores, na discussão sobre os objetivos nacionais de defesa, os militares continuarão a tomar essas decisões sozinhos. Nas últimas décadas, os políticos, de maneira geral, têm sido irresponsáveis em relação à defesa nacional. Esse divórcio é ruim para o país, para a democracia e também para as Forças Armadas”, disse Jungmann, que exerceu o cargo de Deputado Federal em três legislaturas (2003-2010, 2015-2016).
“Existe um grande afastamento da sociedade brasileira dos assuntos relacionados à defesa nacional. Enquanto isso, a competição pela supremacia mundial está crescendo, os gastos com armamentos aumentaram bastante em diversos países e surgem novas tecnologias disruptivas capazes de alterar drasticamente situações de segurança ao redor do mundo, inclusive na nossa região”, afirmou o Almirante Eduardo Leal Ferreira, que foi comandante da Marinha do Brasil (2015-2019). Segundo o ex-diretor da Escola Superior de Guerra, da Esquadra Brasileira e da Escola Naval, um dos principais objetivos da Política e Estratégia Nacional de Defesa – cuja nova versão foi encaminhada pelo Executivo ao Parlamento em julho último – é levar esses assuntos ao conhecimento e à análise da sociedade brasileira.
“Diferentemente do que aconteceu em oportunidades anteriores, haverá desta vez ampla discussão no Congresso Nacional ou a nova Política e Estratégia Nacional de Defesa será aprovada por ‘voto de bancada’, como se diz no Parlamento?”, perguntou o Tenente-Brigadeiro da Reserva Antônio Carlos Egito do Amaral, que comandou a Terceira Força Aérea e a Defesa Aeroespacial Brasileira. “A defesa nacional não deve ser pensada tendo em vista inimigos concretos, que felizmente não temos, mas com base em cenários geopolíticos e capacidades militares e tecnológicas.”
Jungmann criticou o fato de o Congresso não ter convocado nenhuma audiência pública para discutir a versão anterior desse documento estratégico, enviada ao Parlamento em dezembro de 2016: “Passaram-se dois anos e ninguém se interessou em debater o mais alto documento de defesa do país. O texto acabou aprovado pelos parlamentares em 2018 de maneira simbólica, mas não foi assinado nem pelo então Presidente Michel Temer nem por seu sucessor, o Presidente Jair Bolsonaro. Na prática, estamos desde 2012 sem uma Política e Estratégia Nacional de Defesa acordada entre as autoridades civis, militares e a sociedade brasileira. Como exigir que as Forças Armadas se transformem se não há um pacto resultante de um diálogo estruturado e transparente? Este é o coração do problema.”
‘Defesa não dá votos, mas é como seguro de vida’
Ainda segundo o ex-ministro, os políticos não se interessam por assuntos militares porque “não traz voto”, mas está na hora de superar essa ideia de que, para investir em defesa, é preciso existir “uma grande ameaça”. “Forças Armadas são como seguro de vida. Não dá para correr atrás quando se precisa dele”, disse.
“Um país com as dimensões do Brasil e com o papel que tem não apenas na América do Sul, mas também na tessitura diplomática global, precisa ter política de defesa compatível com seus interesses geopolíticos e econômicos e suas necessidades de desenvolvimento. É uma decisão política a ser tomada pensando no longo prazo, inclusive porque o ciclo de desenvolvimento de tecnologias militares é bastante demorado e não pode ser interrompido quando muda o governo ou alterado ao sabor da situação fiscal do país” , disse.
De acordo com Jungmann, há “sinais claros de que, infelizmente, o mundo caminha para novas guerras”, com o desmantelamento de acordos internacionais de contenção das armas nucleares entre Rússia e Estados Unidos, o acirramento da rivalidade entre Washington e Pequim, o fortalecimento de movimentos nacionalistas na Europa e outros potenciais conflitos ao redor do mundo.
“É importante lembrar que 97% de toda a exportação brasileira se faz via Atlântico Sul, onde também se encontram 260 plataformas de produção de petróleo em nossa território marítimo. Por isso, a Marinha precisa de um submarino nuclear com grande capacidade de dissuasão”, disse. Veja como foi o debate “Economia e geopolítica do mar: Brasil busca na ONU ampliar domínio sobre Atlântico”.
Jungmann, que também foi Ministro Extraordinário da Segurança Pública (durante o governo Temer), destacou a ameaça de guerras assimétricas, como a da narcoterrorismo. “Temos em nossas fronteiras quatro dos maiores produtores de drogas ilegais do mundo. O combate ao narcotráfico é, portanto, um problema de segurança pública, mas também de defesa nacional. Exige articulação entre as Forças Armadas (nas regiões de fronteira), a Polícia Federal e as polícias estaduais, assim como com nossos vizinhos. É o poder civil que precisa integrar todos esses esforços”, explicou.
‘Maior ênfase em tecnologia’
Questionado pelo moderador Sergio Fausto, Diretor da Fundação FHC, sobre quais seriam as principais diferenças entre o documento recém-encaminhado ao Congresso e os anteriores, o Almirante Ferreira disse que a Política e a Estratégia Nacional de Defesa, cuja primeira versão foi elaborada em 1996, vem desde então evoluindo para se adaptar a um mundo em permanente transformação.
“Alguns princípios básicos são constantes, como a garantia da unidade nacional, a defesa da soberania e a busca por estabilidade orçamentária. As áreas geográficas que nos preocupam continuam mais ou menos as mesmas: Atlântico Sul, América do Sul, costa ocidental da África e Antártida. O documento atual dá mais ênfase à necessidade de estabelecer parcerias com países fortes em tecnologia e desenvolver capacidade própria”, explicou.
“Não há como separar defesa nacional de desenvolvimento tecnológico. Daí uma crescente preocupação com independência tecnológica e a construção de uma base industrial militar sólida”, disse o almirante. O documento também faz referências à pandemia do novo coronavírus, à mudança climática e a desastres naturais.
Já o Tenente-Brigadeiro Amaral destacou a expressa preferência por ações diplomáticas para resolver eventuais conflitos: “Se queremos reforçar essa estratégia de dissuasão militar, é fundamental que as capacidades nacionais de defesa estejam bem alinhadas e as três forças, bem equipadas”, disse.
Guerras cibernéticas
Segundo Amaral, a recente criação de um Centro de Comando Cibernético, que junta quadros do Exército, da Marinha e da Aeronáutica em um só local perto de Brasília, representou um avanço importante, mas é preciso investir mais recursos para que o país esteja preparado para enfrentar um eventual ataque cibernético. “Esta é uma área nova e muito sensível sobre a qual os países resistem a compartilhar know-how e tecnologia. Por isso, temos que investir para desenvolver conhecimento e tecnologia nossos.”
De acordo com o tenente-brigadeiro, o controle do espaço aéreo brasileiro, realizado por meio de softwares desenvolvidos no país, é consistente, mas é preciso estar atento para os novos riscos que os sistemas tecnológicos utilizados em aviões militares de última geração acarretam. Se forem infectados por um vírus, o comando da aeronave pode ser assumido a distância por mãos inimigas. “Os novos caças Gripen (comprados da Suécia com transferência de tecnologia) têm inúmeros sistemas embarcados. Imagine se algum deles for corrompido? Isso não é teoria, precisamos estar preparados para a eventualidade de uma guerra cibernética”, afirmou.
‘Falta projeto para a Amazônia’
Jungmann criticou a ausência de um projeto de desenvolvimento nacional para a Amazônia compatível com os desafios e as oportunidades do século 21. “Por representar mais de 40% de nosso território, ter amplos recursos naturais e 17 mil quilômetros de fronteiras, a Amazônia sempre esteve no centro das atenções das Forças Armadas. Mas, enquanto sociedade, ainda estamos presos a uma discussão antiga, sobre desmatar ou preservar, explorar ou não explorar e o que fazer com as florestas nacionais e as reservas indígenas.”
Segundo o ex-ministro, falta um projeto detalhado, devidamente discutido e consensuado pela sociedade brasileira, local e nacionalmente, e por todos os atores envolvidos. “São os civis, em especial os eleitos para legislar e governar, que têm a prerrogativa de levar adiante esse debate”, concluiu Jungmann.
Assista ao vídeo do projeto Fura Bolha: Militares no governo: com Prof. José Murilo de Carvalho e Gen. Sérgio Etchegoyen
Otávio Dias, jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br. Atualmente é editor de conteúdo da Fundação FHC.