Os desafios do agro brasileiro frente aos efeitos duradouros da pandemia
O Brasil deve investir em uma agenda de inovação no agronegócio, que exige participação do Estado, da iniciativa privada e da sociedade.
A pandemia de Covid-19 é um sinal de alerta da fragilidade humana frente a zoonoses e impõe uma mudança de paradigma na produção e no comércio mundial de alimentos, com aumento das garantias de sanidade e sustentabilidade, por meio de normas sanitárias, fitossanitárias e ambientais mais rígidas e melhor rastreabilidade, entre outras medidas que devem ser adotadas a nível nacional, regional e internacional.
O Brasil – um dos três maiores exportadores de alimentos do planeta (ao lado de Estados Unidos e União Europeia) – tem condições de influenciar esse debate/processo, mas para isso precisa ser mais firme e transparente em sua política ambiental e recuperar o protagonismo nos fóruns multilaterais que teve no passado recente. Também deve investir em uma agenda de inovação no agronegócio, que exige participação do Estado, da iniciativa privada e da sociedade, assim como em um arcabouço institucional sólido. O objetivo deve ser o de contribuir para que os alimentos sejam mais saudáveis e sua produção e distribuição mais sustentáveis e, ao mesmo tempo, evitar que o protecionismo, outra tendência do mundo pós-pandemia, prejudique o comércio internacional.
Essas foram as principais conclusões do webinar “Os desafios do agro brasileiro frente aos efeitos duradouros da pandemia”, realizado pela Fundação FHC com as participações dos economistas Antônio Márcio Buainain e Maria Sylvia Macchione Saes e do engenheiro agrônomo Marcos Jank.
“O novo coronavírus deixou claro que a saúde dos seres humanos, dos animais, dos vegetais e do planeta precisam caminhar juntas. Cada vez mais, o food security tem que conversar com o food safety.”
Marcos Jank, professor do Insper e titular da “Cátedra Luiz de Queiroz” da ESALQ-USP, é especialista em temas internacionais do agronegócio.
“Reforçado pela pandemia, o nacionalismo agrícola buscará estimular a produção interna de alimentos por meio do aumento de subsídios e tarifas de importação. Como o Brasil vai reagir a essas tentativas de incremento do protecionismo?”
Maria Sylvia Macchione Saes, professora da FEA-USP, desenvolve pesquisas com foco em Sistemas Agroindustriais.
“Nas últimas décadas, o agronegócio brasileiro teve um fantástico progresso tanto em termos de produtividade como de sustentabilidade, mas o país ainda tem um grande passivo ambiental, social e de sanidade dos alimentos, fragilidades que teremos de enfrentar com decisão se quisermos preservar nossa liderança.”
Antônio Márcio Buainain, professor do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisador sênior do INCT/PPED, trabalhou na FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação), em Roma.
‘Sem mercados abertos, milhões passarão fome’
Segundo estimativa do Programa Mundial de Alimentos, ligado à FAO (ONU), o número de pessoas extremamente desnutridas no planeta saltará dos cerca de 130 milhões antes do início da pandemia para 260 milhões após a chegada do novo coronavírus. “Vamos precisar de mercados abertos ou milhões vão passar fome no mundo”, alertou o engenheiro agrônomo Marcos Jank, ex-presidente do ICONE (Instituto de Estudos do Comércio e das Negociações Internacionais), ao criticar a possibilidade de países dificultarem a entrada de alimentos como forma de se proteger de zoonoses e futuras pandemias.
“O mundo avançou muito com a integração das cadeias produtivas, principalmente na produção de alimentos. Seria um tremendo retrocesso abrir mão disso. O comércio é essencial para garantir a segurança alimentar da população mundial”, disse. Segurança Alimentar e Nutricional significa garantir, a todos, condições de acesso a alimentos básicos de qualidade, em quantidade suficiente, de modo permanente e sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, com base em práticas alimentares saudáveis, contribuindo, assim, para uma existência digna, em um contexto de desenvolvimento integral da pessoa humana.
No curto prazo, diz Jank, o desafio é manter as cadeias produtivas funcionando. A médio e longo prazo, garantir que essas cadeias sigam regras e padrões mais uniformes, pois crescerá a preocupação com a origem e a sanidade dos alimentos. “Assim como a Queda do Muro de Berlim (1989) marcou o fim da Guerra Fria e o início de uma era caracterizada pelo avanço da democracia, do capitalismo e da globalização, a pandemia do novo coronavírus será um marco do que chamamos de 3S: sustentabilidade, saúde humana e sanidade animal”, afirmou.
Qual vai ser a política dominante de segurança alimentar no mundo pós pandemia? Vamos voltar 30 anos quando o conceito de food security era confundido com autossuficiência alimentar?”, perguntou Antônio Márcio Buainain, autor de Agricultural Development in Brazil: the rise of a global agro-food power (2019). O economista alertou que a estocagem estratégica de produtos pode ter reflexos indesejáveis na definição de preços dos produtos alimentícios, prejudicando países exportadores como o Brasil.
De acordo com o professor da Unicamp, a pandemia joga lenha e querosene em um mundo que já estava em combustão, com a globalização e o multilateralismo em xeque: “Que rupturas poderão ocorrer nas cadeias produtivas e no comércio global? Existem muitas incertezas e o Brasil precisa estar preparado para enfrentá-las.”
‘Brasil abre mão de influenciar novos rumos’
Segundo Buainain, o agronegócio brasileiro foi o único setor da economia brasileira que se inseriu de verdade nas cadeias globais de valor. “Foi isso o que o tornou protagonista, mas os êxitos do passado não garantem o futuro. Estamos no limiar de uma nova revolução tecnológica na agricultura e na biologia. Para continuarmos avançando, é fundamental implementar uma agenda público-privada com apoio de toda a sociedade e que coloque no centro a sustentabilidade, a saúde humana e a sanidade animal. Infelizmente o atual governo tem dados sinais de estar na contramão dessa tendência”, afirmou.
De acordo com Buainain, o Brasil tem condições de influenciar os rumos do planeta em pelo menos três frentes: ambiental, alimentar e social (devido aos avanços no combate à desigualdade a partir do início dos anos 2000, interrompido desde a crise de 2015). “Com uma diplomacia competente, vínhamos fazendo isso, mas estamos abrindo mão dessa grande oportunidade”, continuou.
‘Mudanças ambientais potencializam doenças infecciosas’
“Com a Covid-19, o princípio da precaução passará a guiar as ações públicas e privadas, com aumento do protecionismo e defesa do conceito de soberania alimentar e da autossuficiência em compras locais”, disse a professora da USP Maria Sylvia Macchione Saes. O resultado serão normas técnicas, sanitárias e fitossanitárias mais restritas e obrigatoriedade da rastreabilidade dos produtos.
Segundo a economista, há cada vez mais evidências de que mudanças ambientais têm papel no surgimento de doenças infecciosas como as gripes aviária e suína, febre aftosa e Hepatite E. “Doenças respiratórias também têm relação com queimadas e emissão de gases do efeito estufa”, disse.
A pesquisadora de Sistemas Agroindustriais alertou para o uso intensivo de antibióticos na agropecuária. “Nos EUA, 80% dos antibióticos são usados na agricultura e ingeridos pelas pessoas através dos alimentos ou da água. Milhões de pessoas sofrem de infecções causadas por organismos resistentes a antibióticos”, disse.
China depende do Brasil, mas não ficará de braços cruzados
O Brasil destina atualmente 35% de suas exportações de agro para a China (principalmente soja, carnes bovina, de frango e suína, suco de laranja, celulose e algodão) e a potência asiática vem comprando cada vez mais do Brasil em função da guerra comercial com os EUA. “Antes, os norte-americanos vendiam US$ 26 bilhões anuais para a China; os brasileiros, US$ 24 bilhões. Hoje, eles vendem US$ 16 bilhões; nós, US$ 35 bilhões. China e Brasil têm um casamento bem sucedido na área alimentar, mas não podemos ser dependentes dessa relação. Temos de diversificar parceiros e produtos”, disse Jank, que acaba de lançar o livro “China-Brasil partnership for agriculture and food security”, organizado pela ESALQ e pela China Agricultural University (CAU). Produtos lácteos e carne de peixe, principalmente de água doce, são áreas em que o Brasil poderia ganhar mercado internacionalmente.
“A China, com sua história multissecular e o impressionante desenvolvimento econômico das últimas décadas, não aceitará indefinidamente o nível de dependência que tem hoje do Brasil em relação ao suprimento de alimentos. As empresas chinesas estão se movendo rapidamente, investindo em inovação, diversificação de importações e até mesmo comprando empresas do setor em outros países. Não podemos ficar de braços cruzados”, disse Buainain.
Para Jank, o agronegócio brasileiro não pode abrir mão do comércio com a China. Ao mesmo tempo, deve abrir mercados nos populosos Sudeste Asiático e Índia e também na África. “A Índia (com 1,35 bilhão de habitantes) importa apenas US$ 600 milhões do Brasil, é muito pouco”, disse.
“O Brasil se acostumou a vender seus produtos agropecuários no porto, e o mundo vinha aqui buscar. Daqui pra frente as exigências e cobranças serão maiores. Para manter a atual liderança, o agronegócio brasileiro precisa ter mais presença nos mercados de destino e se comunicar melhor com os stakeholders locais. Isso exige ações coordenadas entre governo e iniciativa privada”, explicou.
“No mundo da comunicação interligada, não basta ser honesto, tem que parecer honesto”, concordou Buainain, referindo-se à importância de o Brasil se posicionar melhor quanto ao respeito ao meio ambiente e à qualidade dos alimentos.
Ao final de sua apresentação, Jank foi questionado sobre quem seriam os concorrentes do Brasil no agronegócio mundial: “Em primeiro lugar, os EUA. Os demais países do Mercosul também rivalizam em alguns produtos. O Leste Europeu, como a Ucrânia, têm bastante potencial, apesar das amarras que ainda vêm dos tempos do comunismo”, respondeu. Canadá e Austrália são players importantes, mas mais limitados devido principalmente a questões climáticas.
‘Internet pode impulsionar agricultura familiar’
Diante da pergunta de um participante do webinar sobre a possibilidade de uma melhor integração da agricultura familiar à produção agropecuária brasileira, a economista Maria Sylvia Macchione Saes destacou que a internet pode ser uma aliada importante dos pequenos produtores. “Durante a quarentena em São Paulo, feiras como a do Parque da Água Branca fecharam e os produtores de orgânicos rapidamente se organizaram para vender seus produtos online, com delivery em casa”, explicou.
“A conectividade no campo torna mais viável integrar esses pequenos produtores uns aos outros e aos consumidores nas grandes cidades. Depende sobretudo de políticas públicas que levem internet ao meio rural e estimulem a inovação tecnológica e a produção sustentável”, disse a economista.
“Uma parte considerável da pequena produção agrícola é inviável, mas o Brasil tem aproximadamente 1 milhão de agricultores familiares que, se bem apoiados, podem se tornar um grande ativo para o país”, concordou Buainain.
Otávio Dias, jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br. É editor de conteúdo da Fundação FHC.