Debates
04 de dezembro de 2017

Delação premiada: uma comparação entre Estados Unidos e Brasil

“A delação premiada é importantíssima para o combate do crime organizado. Mas, se mal aplicada, vai gerar uma decepção muito grande”, falou Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal.


“Nos EUA, 95% dos processos terminam em ‘plea bargain’. Seria impossível a Justiça norte-americana funcionar sem este instrumento, pois simplesmente não teríamos capacidade de cumprir todas as etapas de cada processo.”

Peter Messitte, juiz federal do Distrito de Maryland (EUA)

“A delação premiada é um instituto importantíssimo para o combate da criminalidade organizada, inclusive dentro da política, mas só se for eficaz. Se mal aplicada, vai gerar uma decepção muito grande.”

Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal

Enquanto nos Estados Unidos, a Justiça penal negociada – “plea bargain” – é um instrumento utilizado desde o Século 18 que se aplica a quase todos os crimes e possibilita ao Estado, mediante negociação com o acusado, concluir rapidamente a vasta maioria dos processos,, no Brasil, seu equivalente mais próximo, a delação premiada, instituída recentemente, tem requisitos bem mais estritos.

Aqui, a delação ou colaboração premiada está circunscrita aos atos ilícitos associados ao crime organizado, incluindo casos de corrupção. Seu principal objetivo é estimular o acusado a entregar à Justiça informações sobre seus parceiros no crime e/ou sobre a própria estrutura e funcionamento da organização criminosa.

“Assim como no Brasil, também há críticas nos EUA, mas o instrumento de Justiça negociada é algo consolidado e pode ser usado em relação a qualquer crime, independentemente de sua natureza, incluindo os mais graves como homicídio. Sem esse instrumento, seria impossível a Justiça americana funcionar a contento”, disse Peter Messitte, juiz federal do Distrito de Maryland (EUA) e professor de direito comparado da American University Washington College of Law, neste seminário na Fundação FHC, realizado em parceria com a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, e mediado por Flávio Yarshell, professor da mesma faculdade.

É claro que um dos objetivos do instituto de ‘plea bargain’ nos EUA (e em outros países que adotam a ‘common law’, originária da Inglaterra) é estimular que o acusado (ou réu) colabore com a Justiça ao entregar os co-autores de crimes e desvendar o funcionamento da organização criminosa. Foi o que aconteceu em diversos processos envolvendo mafiosos, que acabaram por desbaratar o poder dessas organizações criminosas em território norte-americano no século passado. Mas, segundo o juiz Messitte, “é entendido que o ‘plea bargain’ também serve aos interesses gerais da sociedade e da economia judicial (solução mais rápida dos processos para evitar acúmulo).”

‘Tempestade perfeita’

“Minha origem é o Ministério Público. Em São Bernardo do Campo, onde fui promotor criminal, tinha 900 ações penais e 4.000 inquéritos acumulados, em sua maioria crimes menos graves que poderiam ser resolvidos rapidamente. Não há nada que um promotor deseje mais do que um acordo para resolver as coisas com mais agilidade, mas há uma distância entre o que ele quer e o que a legislação autoriza. É esta distância que o Brasil está aprendendo a analisar”, disse o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes.

“Infelizmente estamos aprendendo a utilizar a colaboração premiada em um momento de tempestade perfeita, quando, em virtude da Operação Lava Jato, a população exige punitividade rápida. Quem se posiciona contra algum aspecto da colaboração é imediatamente rotulado como a favor dos corruptos. Talvez em outro momento este novo instituto pudesse ser analisado com mais tranquilidade, mas esta é a realidade e temos de lidar com ela”, completou o ex-ministro da Justiça (2016-2017).

“Temos de extrair do novo instituto da delação premiada o melhor que ele pode contribuir para o combate à criminalidade organizada e à corrupção, mas dentro do nosso sistema. E aproveitá-lo para alavancar uma reestruturação da Justiça penal no Brasil, onde mais da metade dos homicídios estão relacionados ao tráfico de drogas e armas. Ainda houve poucos casos de colaboração para desbaratar o narcotráfico”, completou Moraes.

“Estamos discutindo a introdução no sistema jurídico brasileiro de um instituto que tem suas raízes históricas em outra cultura jurídica, o que é algo delicado. É evidente que a delação premiada tem produzido resultados, e deve ser preservada, mas toda negociação deve respeitar as leis e a Constituição brasileira. Do contrário, o efeito será o oposto do que se espera, pois se farão acordos de todo tipo e, daqui a pouco, a opinião pública rejeitará (o novo instrumento)”, disse o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, ao comentar as falas dos juízes norte-americano e brasileiro.

Brasil: ‘tradição de processos longos’

“A delação premiada é um instrumento necessário, mas creio que precisa de mais mecanismos de controle, em especial por parte do próprio Ministério Público (responsável pela acusação nos processos). Por que um promotor decidiu aceitar esta delação e não aquela? Que benefícios foram concedidos ao acusado neste caso e por que não naquele outro? Pode até ser um controle interno dentro da própria instituição, mas é necessário mais transparência”, disse o advogado Gustavo Badaró, professor associado de direito processual penal da USP.

Badaró lembrou que a tradição brasileira é o da obrigatoriedade da ação penal, ou seja, todos os conflitos devem ser resolvidos por meio de um processo, em geral longo e demorado, não o processo abreviado ou encurtado como o possibilitado pelo instituto de ‘plea bargain’ nos EUA. “Por aqui, o normal é ter investigação, denúncia, resposta do acusado, normalmente de confronto, produção de provas e, por fim, a sentença do juiz”, explicou.

A colaboração premiada passou a ser prevista no Brasil nos últimos anos, com a promulgação da Lei de Combate ao Crime Organizado (2013). Mas só com o surgimento da Lava Lato (início de 2014), ela começou a ser utilizada de forma mais ampla e ganhou grande visibilidade, suscitando tanto manifestações entusiasmadas de apoio como fortes críticas. “Não houve tempo para este novo instituto ser aplicado primeiro na primeira instância, depois passar pelos tribunais superiores e, após alguns anos, ser devidamente analisada e consolidada pelo Supremo Tribunal Federal. Em virtude de vários investigados (da Lava Jato) terem foro privilegiado, o STF foi logo chamado a se manifestar sobre ela, um processo que ainda está em curso”, explicou Badaró.

“Esse ‘choque cultural’ me preocupa porque, quando tiro um instituto de seu ambiente cultural e o levo para outro modelo, isso pode gerar dois efeitos, ambos ruins. Primeiro, a lei não pegar; segundo, e este é muito mais drástico, que o instituto gere resultados não previstos no próprio sistema originário como, por exemplo, se tornar sinônimo de impunidade. Todo cuidado é pouco”, completou.

‘Nos EUA, testemunho tem valor probatório’

Outra diferença importante entre ‘plea bargain’ e delação premiada é que, no Brasil, o conteúdo da colaboração, ou seja, aquilo que o acusado (ou réu) diz para os integrantes do Ministério Público em troca de algum benefício, tem menor valor probatório e precisa ser acompanhado de provas, como esquemas de lavagem de dinheiro ou contas bancárias utilizadas pelos envolvidos no crime. Já nos EUA o colaborador se transforma em testemunha do processo e sua palavra basta para fechar o acordo com os representantes do Estado (Departamento de Justiça).

“No Brasil, o entendimento é que a delação premiada só pode ser um veículo para descobrir outras provas, enquanto no meu país o fato de o acusado admitir que cometeu determinado crime ou testemunhar (contra outras pessoas envolvidas) já serve como prova”, disse Peter Messitte.

“Ao depor como testemunha, o acusado é obrigado a dar as informações que prometeu ao fechar o acordo com os promotores (e homologado pelo juiz, como aqui no Brasil). Mas, se ninguém acreditar e os denunciados por ele acabarem inocentados, ele tem o direito de receber o benefício previsto, pois fez sua parte. O promotor não pode pedir revisão do acordo porque não ganhou o processo no final”, continuou.

Segundo o norte-americano, o juiz deve estar convencido de que existe uma base fática que justifique o acordo de ‘plea bargain’, mas cabe ao Estado o ônus de provar que o testemunho do acusado ou réu é verdadeiro, especialmente quando envolve outras pessoas que virão a sofrer processo em decorrência das denúncias. Do contrário, a nova ação pode não dar em nada.

‘No Brasil, delação exige eficácia’

“No Brasil, o STF já decidiu que mesmo delações cruzadas não bastam para condenar alguém. Mesmo que haja cinco delatores acusando uma mesma pessoa, se não forem apresentadas provas, a delação não tem valor. Nesse sentido, estamos um passo atrás em relação ao sistema americano”, disse Alexandre de Moraes. “A delação exige eficácia. Denúncia só com base em delação, sem provas concretas, pode até ser aceita (pelo MP e homologada pelo juiz), mas vai gerar absolvição, o que é prejudicial ao sistema (de Justiça).”

Em sua apresentação, o mais novo membro do STF revelou já ter deixado de homologar um acordo de delação premiada desde que tomou posse, em março deste ano, e o devolveu à Procuradoria Geral da República (órgão máximo do Ministério Público Federal) “para alterações”. Assim como ele, também o ministro Ricardo Lewandowski já devolveu acordo de delação ao MP. Veja reportagem do site jurídico JOTA.

O MP e a ‘discricionariedade’

Segundo os juízes, também existe uma diferença em relação ao que o promotor pode oferecer ao acusado como benefício caso ele opte pelo ‘plea bargain’, nos EUA, ou a delação premiada, no Brasil.

“Nos Estados Unidos, os promotores e os procuradores, sejam eles federais ou estaduais, têm discricionariedade total, não há limites para fechar um acordo. Já no Brasil, a pena só pode ser reduzida em até dois terços, entre outras limitações”, afirmou Messitte, que, como diretor do programa Brasil-EUA de Estudos Legais e Jurídicos de sua universidade, visita o país há várias décadas e fala bem português.

“A discricionariedade do MP, e eu defendi isso no meu voto no Supremo, existe, mas ela é mitigada, não total. O promotor não pode propor uma sanção não existente em lei ou um regime de progressão da pena sem previsão legal, como vêm ocorrendo em alguns casos. O artigo 37 da Constituição determina que os três poderes do Estado, assim como os três âmbitos da federação, devem atuar sempre de acordo com o princípio da legalidade.

Devemos cumprir a Constituição, ou vamos nos arrepender no futuro”, disse Moraes.

“Agora, se (a delação premiada) estiver de acordo com a lei, o magistrado ou o ministro do STF (no caso de acusados com foro privilegiado) pode até não concordar, achar um absurdo, mas deve homologar.”

Tanto nos EUA como no Brasil, o juiz não participa diretamente da negociação entre o Estado (por meio do Ministério Público) e o réu (representado por seu advogado). Ele se mantém neutro e apenas homologa o acordo, mas com algumas condições: a decisão do acusado de colaborar tem de ser “consciente, informada e voluntária”.

“Ele não pode ser coagido, deve ter tido a oportunidade de consultar amplamente seu advogado e estar consciente das penas que poderá vir a sofrer. Também deve saber que está renunciando a certos direitos, como de reclamar contra uma prova obtida ilegalmente ou ter um julgamento diante de um júri. Ele opta por se declarar culpado de um ou mais crimes para acabar com o processo e ter uma pena mais leve”, explicou Messitte.

Foro privilegiado e cumprimento da pena

Finalmente, os dois juízes falaram sobre outros dois aspectos do sistema jurídico que apresentam significativa diferença lá e cá, embora não estejam diretamente ligados à questão da Justiça negociada.

O primeiro deles é o foro privilegiado, que aqui no Brasil determina que diversas autoridades públicas, como o presidente da República, ministros, senadores e deputados federais só possam ser julgadas pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça, no caso de governadores, entre outros.

“Nunca tivemos isso (nos EUA). Quem decide sobre a culpabilidade de qualquer pessoa, menos no caso do presidente, é o juiz de primeira instância, ou seja, eu”, brincou o norte-americano. “E, em geral, isso acontece por meio de ‘plea bargain’. O MP faz o acordo, eu homologo, imponho a sentença e, geralmente, há pouca apelação e revisão”, disse Messitte.

“Concordo que a Constituição de 1988 ampliou demais o foro privilegiado, mas esse debate está contaminado por muita superficialidade e populismo. É falso dizer que o processo penal corre mais rápido na primeira instância do que no Supremo. A primeira instância não é apenas a vara de Curitiba, que está fazendo um belo trabalho na Lava Jato, mas para isso constituiu uma verdadeira força tarefa, com um juiz auxiliar, participação do MP, da Polícia Federal etc. Isso seria possível em todas as comarcas do país? Comparar o ritmo de andamento dos processos nas diversas instâncias desvia o foco da necessidade de se dar uma estrutura mais adequada a toda a Justiça criminal”, disse Moraes.

O juiz Messitte também contou que, nos EUA, uma pessoa condenada em primeira instância, por meio de ‘plea bargain’ ou não, começa a cumprir a sentença imediatamente. “Quando eu decido que um réu vai para a cadeira, ele vai na hora, independentemente da possibilidade de recursos em instâncias superiores. É possível que o juiz de primeira instância erre, mas, se houver uma revisão da pena depois, paciência. O condenado não tem direito a nenhuma compensação”, disse.

Em 2016, o STF admitiu o início da execução da pena após condenação em segunda instância, não sendo mais necessário que o processo ‘transite em julgado’, ou seja chegue às mais altas cortes do país, no caso o próprio Supremo ou o Superior Tribunal de Justiça (dependendo do caso). Mas o assunto pode voltar a ser discutido pelos ministros da corte em breve. O ministro Alexandre de Moraes não se manifestou sobre esse tema.

“Diferentemente dos Estados Unidos, que se estruturou de maneira mais horizontal, o Brasil é uma sociedade bastante verticalizada e hierarquizada. Vemos isso em expressões como ‘vai reclamar para o bispo’. Normalmente só aceitamos a privação de um direito depois da última palavra do órgão mais alto na hierarquia”, disse o professor Gustavo Badaró.

Dica de leitura

Ao final de sua fala, o juiz Messite sugeriu, aos que desejarem se aprofundar no assunto, a leitura do artigo O Acordo de Vontades no Processo Criminal do Brasil e nos Estados Unidos, de autoria da procuradora brasileira Luciene Angélica Mendes.

Otávio Dias, jornalista, é especializado em questões internacionais. Foi correspondente da Folha em Londres, editor do estadão.com.br e editor-chefe do Brasil Post, parceria entre o Huffington Post e o Grupo Abril.