Debates
15 de março de 2016

Crescimento, Distribuição de Renda e Democracia

“É hora do Brasil realizar reformas tendo em mente a ideia republicana de tratar os cidadãos de forma equânime e fortalecer a agenda social”, disse o economista Marcos Lisboa.

“A agenda republicana passa pelo tratamento igual dos iguais e o fortalecimento de uma política social efetiva e eficaz associada à melhoria da qualidade das políticas públicas no Brasil.” – Marcos Lisboa, economista

O Estado brasileiro se transformou em uma grande máquina de transferir recursos — e não necessariamente dos mais ricos para os mais pobres. “Tem uma série de benefícios que beneficiam os mais pobres, assim como outros que beneficiam os mais ricos. Portanto, é muito difícil saber o que acontece no Brasil em termos de distribuição de renda pela ação do Estado”, disse Marcos Lisboa, presidente do Insper, em seminário na Fundação Instituto Fernando Henrique Cardoso.

“Em sociedades muito desiguais, como a brasileira, o processo eleitoral gera uma enorme demanda por transferência de renda e consequente aumento da carga tributária”, afirmou Samuel Pessoa, pesquisador do Instituto de Economia da Fundação Getulio Vargas no Rio de Janeiro e colunista do jornal Folha de S.Paulo.

“A desigualdade, emoldurada pela democracia, gerou uma demanda por mais igualdade que não tem possibilidade de ser atendida (nas circunstâncias atuais)”, completou Sérgio Besserman, professor de economia e engenharia ambiental da PUC-RJ, ex-diretor do BNDES e ex-presidente do IBGE.

Os três intelectuais participaram do seminário Crescimento, Distribuição de Renda e Democracia: em busca de um novo modelo, cujo objetivo foi discutir as raízes da atual crise econômica e fiscal e o que fazer para o PIB voltar a crescer sem abandonar o sonho de um Brasil mais justo, como determina a Constituição de 1988.

“Com relação às aspirações da Constituição — e eu fui constituinte — existe hoje um consenso de que há um desequilíbrio entre os nossos sonhos de oferecer condições para que os mais pobres cresçam na vida e os mecanismos de sustentação desses objetivos”, disse Fernando Henrique Cardoso. “O mecanismo usado pelo Estado foi a expansão dos gastos e, em consequência, dos tributos. O Estado é obrigado a fazer o que está na Constituição, mas não tem mais condições de fazer isso. Este é o nó que vivemos e, portanto, esse modelo terá de ser revisto”, afirmou o ex-presidente.

Aumento dos gastos sociais

Em sua apresentação, Samuel Pessoa destacou que, de 1992 a 2014, o gasto primário (não financeiro) da União, excluindo transferências para Estados e municípios, aumentou de 11% para 19% do PIB (Produto Interno Bruto). Com a recessão, já deve ter passado de 20%. “O que causou esse aumento do gasto público de quase dez pontos percentuais em uma sociedade que não passou por uma guerra foram os gastos sociais, responsáveis por quase 80% da elevação”, disse.

Além do desejo da maioria dos eleitores de ver seus direitos previstos na Constituição atendidos, Pessoa disse que as instituições brasileiras, inclusive o Legislativo e o Judiciário, estão sujeitas a ações de grupos de interesse e à lógica da ação coletiva. “A soma dessas duas coisas — o eleitor querendo transferência de recursos do Estado para si e os inúmeros grupos de interesse defendendo isenções e benefícios — é uma carga tributária imensa e uma capacidade muito baixa de poupança do Estado, que não aumenta mesmo em ciclos de crescimento”, disse.

Esse fenômeno aconteceu, por exemplo, em boa parte do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), quando o mundo viveu o chamado “boom das commodities”, antes da crise financeira global de 2008. “Entre 2003 e 2008, a taxa de investimento no Brasil foi de 13% para 18% do PIB enquanto a taxa de poupança foi de 14% para 15%. Então, a situação melhora, o crescimento melhora com investimento, mas a poupança não vai junto. E quando a gente bate em alguma restrição, seja ela externa ou do setor público, às vezes ambas, produz-se um crescimento de voo de galinha”, explicou o economista.

Ainda segundo o pesquisador da FGV, o aumento do gasto social ficou meio escondido entre 1999 e 2010 porque houve crescimento médio da receita da União de 6,8% ao ano enquanto o crescimento do PIB foi de 3,4% em média. “Durante 12 anos, a receita cresceu em dobro da velocidade do PIB, o que escondeu inconsistências de nosso contrato social e de nossa ação coletiva. Parecia que o problema fiscal estava controlado, a dívida poderia ser paga e a questão era apenas de eficiência”, explicou.

Mas, a partir de 2011, a dinâmica da receita da União se aproximou da taxa de crescimento do PIB, o que foi suficiente para deslizarmos de um superávit primário de 3,5% do PIB em 2008 para um déficit primário de 2,5% em 2015.

Ao encerrar sua fala, Pessoa  demonstrou preocupação com a mensagem transmitida durante as manifestações de 13 de março último. “O que as ruas dizem é que as pessoas acreditam que, resolvendo a questão da corrupção, o buraco fiscal estaria resolvido. A corrupção é uma questão importantíssima, mas o rombo nas contas públicas não está associado a ela. Ele está associado a um conjunto de direitos e benefícios que gerou um Estado que não cabe em nossa economia e parece não haver a menor consciência da sociedade de que esse problema é real”, afirmou Samuel Pessoa.

Sociedade legitima excessos

Marcos Lisboa criticou a naturalidade com que a sociedade brasileira aceitou a “disseminação de uma quantidade impressionante de benefícios e subsídios concedida pelo Estado a setores da economia especialmente a partir de 2009 (penúltimo ano do governo Lula)”. “Comprometemos recursos do Tesouro até 2060 que superam R$ 450 bilhões com créditos subsidiados via BNDES. As lideranças políticas e empresariais brasileiras acharam isso razoável e o povo não foi pra rua protestar”, afirmou o economista, que foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda entre 2003 e 2005 (primeiro mandato de Lula). As manifestações contra o governo ocorridas desde o início de 2015 tiveram como foco principal a corrupção.

Lisboa também atacou a proposta de ampliação do Simples Nacional para beneficiar empresas que faturam até R$ 16 milhões por ano. “Não existe algo semelhante em nenhum outro lugar no mundo. É um total disparate”, disse. As empresas beneficiadas pelo regime tributário conhecido como Simples Nacional pagam alíquotas de imposto reduzidas em comparação com as demais empresas.

O economista também criticou políticas protecionistas para as indústrias automobilística e naval, colocadas em prática durante os governos do PT. “Tentamos fazer pela terceira vez a indústria naval. Deu errado as outras duas e agora, de novo. Para fazer navios com recursos subsidiados do governo, deixamos de fazer outras coisas como estradas ou portos. Não dá para um país fazer tudo. Para isso existe o comércio internacional”, afirmou.

“As políticas de proteção não podem ser genéricas. Se você protege a indústria do couro, desprotege a de calçados. Se protege a indústria naval, piora a vida da Petrobras. O resultado é um nível de distorção gigantesco na estrutura tributária, na burocracia e no comércio exterior”, disse.

Lisboa também criticou benefícios dados a certos grupos da sociedade e pagos por todos, como a meia entrada em cinemas e teatros. Também chamou atenção para o fato  singular de não haver no Brasil idade mínima de aposentadoria: “Achamos razoável as mulheres poderem se aposentar aos 53 e os homens aos 55 anos. Que sociedade torta é esta que criamos?”, perguntou.

Para Marcos Lisboa, não se atinge o objetivo de reduzir a desigualdade social de forma consistente por meio de amplos benefícios tributários ou de outra ordem. “A grande queda da desigualdade vem pelo gasto público em educação. É isso que cria oportunidades para as próximas gerações e constrói um país mais igual”, disse. Ele também destacou a importância de sistemas públicos de saúde e previdência eficientes e sustentáveis.

Segundo o economista, o Brasil investe recursos na universidade pública gratuita para a elite em vez de garantir um ensino médio de qualidade para todos os que necessitam. Lisboa defendeu também a realização de um pente fino nos programas sociais existentes para mensurar seu impacto: “A maioria não funciona. Não dá para fazer política pública sem avaliar resultado.”

Por fim, concluiu que a responsabilidade por esse conjunto de distorções é de toda a sociedade. “O problema não está apenas em Brasília. É a defesa dos interesses miúdos que todos nós fazemos”, disse.

Surfar a onda do mundo

Para Sérgio Besserman, o mundo está cada vez mais globalizado e o Brasil, assim como outros países de dimensões continentais e grandes populações, precisa olhar menos para o próprio umbigo e tentar entender para onde vai a onda global.

“Vou me apropriar de Jürgen Habermas (filósofo e sociólogo alemão) quando ele fala do poder decrescente do título eleitoral. Nos anos 60, você votava e decidia sobre A, B, C e D. Em 2016 a gente vota e decide A e um pouquinho de B. Porque o mundo se globalizou”, explicou o professor da PUC-RJ.

Segundo ele, o segredo para o Brasil atingir seu potencial econômico é conseguir surfar a onda global, que ainda não está bem delineada após a crise de 2008. “O mundo não vai sair da crise que tem impacto até hoje com aumento de consumo ou gasto governamental. Também não vai ser via comércio exterior. Então só pode ser pelo investimento em conhecimento e tecnologia”, afirmou.

“Como se combate a desigualdade mais rapidamente? A agenda (apontada por Pessoa e Lisboa) é muito complexa e não vai dar tempo (de esperar por sua realização). (Enquanto isso), o sistema político estará sujeito a populismos e crises. O ativo mais importante do mundo hoje é o conhecimento. Então temos que fazer uma ‘revolução’ aqui (para impulsionar o conhecimento ligado à mudança tecnológica)”, afirmou.

Conselheiro de diversas organizações que atuam na área do meio ambiente, como WWF, ITDP e Rio Climate, Besserman disse que o aquecimento global é uma grande oportunidade para o Brasil: “Somos o único país do mundo em que esse fenômeno oferece mais oportunidades que custos e riscos. Primeiro porque a economia de baixo carbono nos torna mais competitivos. Segundo porque o mundo vai precisar de muito alimento com uma base tecnológica diferente da atual.”

“Desenvolver uma economia de baixo carbono aliada à biotecnologia para aumentar nossa produtividade e produzirmos alimentos em escala global é o caminho para termos crescimento suficiente e financiar parte das aspirações da Constituição de 88”, concluiu.

Fernando Henrique concordou que o desafio do Brasil é desenvolver uma visão de longo prazo em sintonia com as mudanças do planeta. “A única possibilidade de o Brasil voltar a se engatar com o mundo é aproveitar as oportunidades e as vantagens relativas. Hoje não sabemos o que acontecerá amanhã, muito menos em dez anos. É preciso entender qual é a onda para, então, podermos surfar. Ou vamos bater de novo na rocha ali na frente. ”, concluiu o ex-presidente.

“Além de saber o que fazer, como fazer? Como ter força para implementar as mudanças? Vivemos o desfazimento das estruturas políticas que foram montadas e não correspondem mais às demandas da sociedade. Isso vai levar um tempo e será difícil e sofrido”, afirmou FHC.

Agenda republicana

Samuel Pessoa lembrou que a economia brasileira estava no rumo certo durante o período que ele apelidou (com um toque de ironia) de Malocci, em referência às gestões dos ministros da Fazenda Pedro Malan (Governo FHC) e Antonio Palocci (primeiros anos de Lula).

“O Governo FHC foi genuinamente social-democrata, mas já na Terceira Via antes mesmo de ela ser proposta na Europa. No sentido de liberalizar o mercado para que ele funcione bem, com mais abertura, competição e menos protecionismo, gerando crescimento. E, com esse crescimento, extrair um excedente para responder aos desejos e demandas da sociedade expressos na Constituição de 88, reduzindo os excessos”, afirmou.

A Terceira Via foi uma alternativa à dicotomia política entre esquerda e direita pós queda do Muro de Berlim, que buscou adotar uma política econômica ortodoxa e políticas sociais progressistas, proposta por líderes dos anos 90 como Tony Blair (Reino Unido), Bill Clinton (EUA) e o próprio FHC.

Em 2005, o ministro Palocci propôs a realização de um ajuste fiscal estrutural, que visava estabelecer um teto para o gasto público, mas a ideia foi bombardeada por Dilma Rousseff, então ministra da Casa Civil, e abandonada com sua saída do Ministério da Fazenda. “Perdemos uma grande chance”, disse Pessoa. “A partir de então certas elites formadas nos anos 50, que não sei como levantaram do túmulo, fizeram esse ensaio nacional desenvolvimentista, que começou pequenininho, foi crescendo e nos colocou no buraco em que estamos”, concluiu.

Marcos Lisboa defendeu que a queda da desigualdade nos anos 2000 não foi resultado diretamente dos programas sociais iniciados no Governo FHC, posteriormente modificados e ampliados no Governo Lula. “O programa Bolsa Família, por exemplo, foi eficaz para reduzir a extrema pobreza no país, mas a queda consistente da desigualdade foi resultado da estabilização da moeda e do crescimento econômico, da ampliação do mercado de trabalho e da melhoria dos salários, assim como reflexo de uma nova geração mais educada”, afirmou.

Para o presidente do Insper, é hora de o Brasil realizar reformas essenciais — entre elas a da previdência e a tributária — tendo em mente a ideia republicana de tratar os cidadãos de forma equânime, sem concessão de privilégios, e fortalecer a agenda social com um choque de qualidade das políticas públicas no Brasil, com ênfase em educação, saúde e justiça.

“Essa agenda não é contrária ao gasto social. Pelo contrário, ela fortalece e viabiliza o investimento no social. A palavra social é mal utilizada no Brasil hoje, pois existem diversos gastos na rubrica social que agravam e pioram a distribuição de renda. A ação do Estado no Brasil não tem sido sinônimo de mais igualdade”, concluiu.

Lisboa também defendeu o fortalecimento das agências reguladoras e do Banco Central e a abertura paulatina do país à concorrência externa, com regras mais transparentes e claras e novos acordos comerciais. “A agenda republicana passa pelo tratamento igual dos iguais e o fortalecimento de uma efetiva e eficaz agenda social com uma agenda da qualidade da política pública no Brasil”, concluiu.

Otávio Dias, jornalista, é especializado em política e assuntos internacionais. Foi correspondente da Folha em Londres, editor do site estadao.com.br e editor-chefe do Huffington Post no Brasil.