Política e Economia na Dinâmica da Crise
Para os debatedores, “não há solução rápida à vista”.
“A atual crise econômica do Brasil não é cíclica. Foi construída com muito trabalho desde a etapa final do primeiro mandato do presidente Lula.”
Armínio Fraga, economista
“Vivemos crises gêmeas, que são como tornados gêmeos. Um alimenta o outro e, quando se fundem, vira um super tornado. A crise econômica alimenta a política, que alimenta a econômica.”
Sérgio Abranches, cientista político
“Por causa da Operação Lava Jato, não sabemos quais sãos os atores políticos que estarão de pé nos próximos meses. Então, mesmo que haja a possibilidade de reorganizar as lideranças políticas, organizar com quem?”.
Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente da República
As frases acima ilustram bem o nó cego em que se encontra o Brasil neste primeiro ano do segundo mandato da presidente Dilma Rousseff, do PT. O país está envolvido em uma crise de três dimensões – econômica, política e moral (ou policial) – e não há solução rápida à vista. Esta foi a conclusão do debate “Política e Economia na Dinâmica da Crise”, promovido pela Fundação FHC em 15 de setembro. Por mais que tenham tentado mostrar descontração e otimismo, o clima entre os dois debatedores e o público que lotou o auditório da Fundação em São Paulo foi de preocupação e desânimo.
Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central de 1999 a 2002 (Governo FHC) e sócio fundador da Gávea Investimentos, iniciou o debate com uma rápida, mas contundente, descrição de como a atual crise econômica foi gestada durante os governos de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) e Dilma Rousseff (desde 2011).
A dimensão econômica
Armínio lembrou que, quando Antonio Palocci era ministro da Fazenda de Lula (2003-2006), as bases da política macroeconômica que sustentaram o Plano Real foram inicialmente mantidas e o ministro petista chegou a propor um plano para tratar questões de longo prazo da saúde financeira do Estado brasileiro. Mas a ideia foi bombardeada por setores do governo saudosos do modelo econômico que vigorou no Brasil nos anos 50.
Liderados por Dilma, ministra-chefe da Casa Civil a partir de 2005 (antes era ministra de Minas e Energia), que qualificou como “rudimentar” o plano de Palocci, esses setores foram responsáveis, pela implantação da “nova matriz econômica”, que começou a ser colocada em prática ainda no governo Lula e vicejou no primeiro mandato de Dilma.
“Acreditávamos que o Brasil tinha evoluído na direção de um caminho que poderia dar certo ao convergir para os padrões mais elevados da economia global. Não seria fácil ou rápido, mas havia uma base para isso, construída principalmente ao longo do governo do presidente Fernando Henrique e que parecia, num primeiro momento, que iria sobreviver”, disse. “Às vezes fico pensando se o presidente FHC existiu mesmo? Não foi uma ilusão?”, perguntou, arrancando risos da plateia e do colega de mesa.
“Havia, no entanto, uma ansiedade (de alguns setores do governo Lula) de voltar a um caminho parecido ao que o Brasil trilhou desde a década de 50 e que desembocou na chamada década perdida nos anos 80. Um modelo de economia fechada, com a famosa substituição de importações, pouca ênfase em disciplina macroeconômica e produtividade”, seguiu Armínio.
Com a saída de Palocci do Ministério da Fazenda e sua substituição pelo ministro Guido Mantega, próximo a Dilma, o Brasil começou a se desviar do caminho anterior e adotou um modelo de cada vez maior interferência estatal em áreas em que o Brasil já tinha evoluído para um modelo melhor, como os de infraestrutura e petróleo, entre outros. “Aí vem a chamada nova matriz econômica, que organiza essas ideias. O governo passa a distribuir favores econômicos, proteção, crédito subsidiado e vantagens tributárias sem uma lógica econômica aparente, nem mesmo uma lógica social”, disse.
O novo modelo parecia ter dado certo nos primeiros anos porque o mundo vivia um período de calmaria econômica (que durou até 2008, quando explodiu a crise financeira nos EUA) e havia um boom no preço das commodities (alimentos e matérias primas), que respondem pela maior parte das exportações brasileiras.
“O presidente Lula teve muita sorte porque chegou ao Planalto num momento de virada da economia mundial e essa fase positiva durou até 2008, que nos pegou num momento bom e foi bem administrada. Não estou minimizando o tamanho da crise, mas ela não teve aqui as consequências que teve em outros lugares, inclusive porque o Brasil ainda não tinha se alavancado tanto (em dívidas)”, explicou.
“Mais ou menos no final do governo Lula, aquela fantástica arrancada dos preços das commodities entrou em colapso. O vento internacional de fato mudou, e os responsáveis pela direção da economia brasileira dobraram, triplicaram a aposta, com uma resposta sempre de demanda, sem preocupação com a produtividade e o lado da oferta. O resultado é que a inflação começou a crescer, assim como o déficit em conta corrente e os prêmios de risco”, continuou.
Para fechar o quadro, veio o excesso de gastos em 2014, quando a presidente se candidatou à reeleição (e venceu), comprometendo o equilíbrio fiscal no início do segundo mandato. “Não estamos vivendo apenas uma recessão, que poderia ser confundida com um momento cíclico, ou seja, o governo teria chutado o pau da barraca para ganhar as eleições e agora estaria de ressaca e precisaria dar uma freadinha de arrumação. A crise, na realidade, é fruto de mudanças que vêm de longe”, disse.
“Não tenho ilusão. O quadro caminha quase inexoravelmente para uma crise bem mais profunda, e a solução não é tecnocrática. Não basta apertar alguns botões econômicos que a coisa vai se resolver. A crise econômica está totalmente imbricada com as crises políticas, policial, de valores”, concluiu.
De acordo com Armínio, se permanecer no atual modelo, o Brasil não vai voltar a crescer economicamente. Para ele, há sinais claros de que a população e o meio político não apoiam aumento de tributos neste momento e, portanto, é preciso trabalhar do lado dos gastos, que são muito engessados pela Constituição brasileira.
“Faz sentido pensar em reformas mais profundas, mesmo que só tenham impacto em longo prazo, pois melhorariam as expectativas e ajudariam a conquistar algum espaço hoje”, afirmou Armínio, que publicou artigo nos jornais O Estado de S.Paulo e O Globo (domingo, 13 de setembro), no qual detalhou um conjunto de propostas de superação da crise. O economista era a escolha do candidato Aécio Neves, do PSDB, para o Ministério da Fazenda caso tivesse vencido o pleito do ano passado.
Além da reforma da Previdência, Armínio propõe uma radical desvinculação dos gastos do Orçamento previstos na Constituição, inclusive os percentuais do PIB destinados à educação e à saúde, e sua substituição por planos plurianuais. “O Orçamento da União é a peça econômica fundamental da democracia, no qual a sociedade decide o que fazer com os recursos de que dispõe. Programas plurianuais, sim. Gastos rígidos definidos na Constituição, não”, afirmou.
Ao concluir sua fala introdutória, Armínio fez uma defesa enfática da austeridade fiscal. “Acho a austeridade uma coisa boa. O que é o oposto dela? A bagunça em nossas vidas pessoais e na do país? É como exercício físico. Se a pessoa está em forma e pega uma doença, ela consegue reagir melhor”, disse.
A dimensão política
O sociólogo e cientista político Sérgio Abranches iniciou sua participação no debate com um alerta preocupante. Segundo ele, o Brasil não poderia ter escolhido um momento pior da dinâmica global para entrar em crise. “É um momento de grandes transformações, sem precedentes talvez desde o fim da Idade Média. Todo o mundo está perplexo diante dos desafios representados pelas mudanças do Século 21 do ponto de vista científico, tecnológico, político, econômico e social”, disse.
Segundo ele, ninguém tem respostas e, portanto, vivemos uma fase de muita experimentação, erros e instabilidade. “Há também um desencanto com a democracia e uma perda de capacidade decisória, exatamente porque as respostas convencionais não funcionam mais”, afirmou.
De acordo com seu raciocínio, o Brasil terá de enfrentar os desafios de duas agendas superpostas: superar a sequência de erros dos últimos anos e, ao mesmo tempo, encarar os desafios do futuro. “Estamos de novo mergulhados nas dificuldades do dia a dia e perdemos a capacidade, que havíamos começado a conquistar com a estabilidade monetária, de olhar mais para o horizonte e o futuro”, disse.
Abranches explicou que o presidencialismo, sistema de governo vigente no Brasil, requer afinação e sincronia entre as pautas dos Poderes Executivo e Legislativo. Quando o presidente é popular, há uma força centrípeda que faz com que o governo atraia apoiadores, dilua a oposição e consiga fazer maioria com relativa facilidade no Congresso. O processo decisório flui.
Já quando o governo se torna impopular, com uma taxa de aprovação inferior a 40% e de reprovação superior a 40%, é praticamente impossível o Executivo controlar a agenda e a tendência do Parlamento é atirar para todos os lados. Segundo pesquisa Datafolha divulgada em julho, 71% dos brasileiros reprovam o governo Dilma e apenas 8% o apoiam. Outros 20% consideram o governo regular.
Para solucionar o que ele chama de crises gêmeas, por terem uma dimensão econômica e outra política, é necessário que “a política funcione minimamente para conseguir mudar o que precisa ser mudado na economia”. Tanto no governo quanto no Congresso, é preciso haver lideranças políticas e sociais capazes de controlar a maioria parlamentar e fazer com que os acordos sejam cumpridos.
Mas, já durante o primeiro mandato de Dilma e, principalmente, a partir do início do segundo, houve uma deterioração dramática na coalizão de apoio ao governo. “O governo não governa, o Congresso não decide”, afirmou. Como não existe liderança no Palácio do Planalto nem no Parlamento, é difícil reverter a crise, que se torna mais aguda com a inflação subindo, a renda caindo e o desemprego aumentando. Segundo Abranches, este agravamento pode levar a um ambiente de ruptura.
“Em todas as rupturas recentes ocorridas na América Latina ou na Europa, havia essa mistura de governo impopular, crise de confiança e liderança, paralisia decisória, polarização e radicalização”, afirmou.
Para Abranches, pensar em mudanças políticas mais profundas nesse momento, como a reforma política, é utopia. “Precisamos de uma solução de conjuntura adequada do ponto de vista político para encaminhar as mudanças econômicas. Com a melhora do quadro econômico e do processo decisório, poderemos então fazer as necessárias mudanças políticas”, disse.
Para iniciar esse processo, no entanto, “alguém deve unificar o campo governista, fazer a coalizão funcionar e, assim, evitar uma ruptura política ou uma crise crônica”. Segundo ele, uma situação de crise como a atual “não é sustentável” por mais três anos. O mandato da presidente Dilma vai até 1º de janeiro de 2019.
“Usando a mesma expressão do Armínio, não há uma solução tecnocrática. Só política. Cabe aos políticos profissionais, àqueles que são do ramo, buscarem uma saída política à altura da gravidade da crise”, concluiu.
A dimensão moral (e policial)
Terceiro a falar, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso agregou outro elemento perturbador ao já dramático cenário: as consequências imprevisíveis da Operação Lava Jato, da Polícia Federal, que investiga casos de corrupção na Petrobras e outras empresas estatais.
“Temos também uma crise moral. Estamos hoje envolvidos por duas forças: a crise econômica e a Lava Jato, ambas sem controle. Não sabemos quais lideranças estarão vigentes como atores do processo político por causa da Lava Jato. Então, mesmo que haja a possibilidade de reorganizar as lideranças, organizar quem com quem, se não se sabe quem é o outro”, afirmou.
Segundo FHC, “não se sabe com quem se fará o jogo, nem mesmo com que mecanismos ele será feito. Por isso, é um processo difícil e vai levar algum tempo. Não é desejável, mas vai levar”. Dezenas de políticos, principalmente do PT, PMDB e outros partidos da base governista, são alvos de denúncias e podem ser processados no futuro próximo, entre eles os presidentes da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, e do Senado, Renan Calheiros. Ambos são do PMDB, o maior partido do Congresso e parte da coalizão governamental.
O ex-presidente criticou também o que ele chamou de “presidencialismo de cooptação”, que teria substituído nos governos do PT o “presidencialismo de coalizão”, termo criado justamente por Sérgio Abranches. “No presidencialismo de coalizão, você traz parceiros para o governo comprometidos com uma agenda. Há uma luta permanente do Executivo com o Congresso para que se cumpram alguns objetivos, mas pelo menos há um compromisso”, explicou.
Este teria sido o modelo da relação entre os Poderes Executivo e Legislativo durante o governo FHC (1995-2002). “Com a posse de Lula, progressivamente se passou para um sistema de adesão ao governo, mais motivada por uma ideia de hegemonia do que de agenda, cimentada por práticas que não são as mais legítimas”, afirmou.
O presidencialismo de cooptação (que funcionou em parte no governo Lula, devido à alta popularidade e à habilidade política do líder petista) perdeu legitimidade e eficácia, com as descobertas do Mensalão e do atual escândalo de corrupção na Petrobras. Também a falta de experiência política e as qualidades pessoais da presidente Dilma, considerada por muitos como intransigente, ajudaram na deterioração da relação com sua base de apoio no Congresso.
Acrescente-se a isso a fragmentação cada vez maior do Parlamento. “Hoje, se juntarmos os três maiores partidos, PMDB, PT e PSDB, que não se juntam, dá menos de 200 votos. E a Câmara tem 513 deputados. Como se governa com um sistema disperso, fragmentado, sem coesão? É uma situação de ingovernabilidade, qualquer um que chegue à Presidência enfrentará esse problema”, disse FHC.
De acordo com o líder tucano, “em tese existe a possibilidade de a presidente Dilma voltar a ter controle da situação, mas é difícil”. Para o ex-presidente, impasses dessa magnitude “só se solucionam na crise mesmo.” Em seguida, ele recordou da época do Plano Real, que derrotou a hiperinflação e estabilizou a economia em 1994. Na época, Itamar Franco era presidente, e FHC ministro da Fazenda.
“Só foi possível fazer o Plano Real porque a população estava desesperada com a inflação, o Congresso estava em profunda crise por causa do ‘escândalo dos anões do orçamento’ e o governo tinha de se apoiar na união nacional porque não tinha o voto direto para apoiá-lo”, lembrou. Itamar assumiu em 1992, com o impeachment de Fernando Collor de Mello, de quem era vice, e governou até janeiro de 1995, quando foi substituído por FHC.
“Foi então possível organizar uma resposta ao momento porque houve coesão de lideranças, o presidente apoiou e o grupo que se incumbiu de tomar as medidas tinha competência técnica e capacidade política”, continuou. “Se tive algum papel no Plano Real foi de falar, de convencer o próprio governo, o Congresso e o país. Termina por ser novamente uma questão de liderança”, afirmou.
Para FHC, vai levar um tempo antes que se “vislumbre que novo bloco de poder vai se constituir para dirigir o Brasil. “Não falo apenas de políticos e partidos, mas da sociedade, dos empresários, trabalhadores e movimentos sociais, da mídia, das universidades e dos setores da burocracia. Todos precisam, juntos, formar um cimento maior que permita reorientar todas essas questões.”
Segundo FHC, as propostas de ajuste fiscal e aumento de impostos feitas pelos ministros da Fazenda, Joaquim Levy, e do Planejamento, Nelson Barbosa, dificilmente passarão no Congresso. “Nada passa no Congresso sem força política porque é preciso contrariar interesses enraizados. Reforma é isso. Para atravessar o deserto, precisa de fibra política, convicção. Ainda vamos tomar vários tombos até acharmos o caminho e continuaremos nesse suspense até podermos celebrar os novos vencedores”, afirmou.
“Alguma saída vai haver”, disse, tentando transmitir um pouco de otimismo, logo perdido. “O custo é altíssimo e já está dado. O país como um todo perdeu muito e cada um também. Guardadas as proporções, todos ficamos mais pobres.”
Embora tenha qualificado a situação como “calamitosa”, FHC fez uma ressva positiva. “É preciso dizer que houve avanços (desde a redemocratização). No passado, a esta altura dos acontecimentos, estaríamos falando de generais, hoje estamos falando de juízes.”
Otávio Dias, jornalista, é especializado em assuntos internacionais e política. Foi correspondente da Folha em Londres, editor do Portal do Estadão e editor-chefe do Huffington Post no Brasil.