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Debates

Brasil e Argentina: Devem os dois países atuar juntos num mundo em fragmentação?

/ auditório da Fundação FHC


“Um período de governança global que vinha desde a Segunda Guerra Mundial, quando esteve muito claro quem ditava as regras, chegou ao fim. Agora está mais difícil saber quem dará as cartas, e assim será por muito tempo. Daí a importância de trabalharmos juntos.”

Felix Peña, advogado e economista argentino, é especialista em relações econômicas internacionais, direito comercial internacional e integração econômica


Em um mundo inóspito, em que os espectros do protecionismo e mesmo da guerra voltam a rondar a vida internacional, a aliança estratégica entre Brasil e Argentina se torna cada vez mais importante e necessária. Esta foi a opinião unânime dos participantes de seminário sobre o novo momento das relações entre os dois vizinhos sul-americanos, com duração de uma manhã inteira, na Fundação Fernando Henrique Cardoso.

“A aliança Brasil-Argentina é uma força-profunda”, disse o ex-ministro das Relações Exteriores brasileiro Celso Lafer, citando expressão do historiador francês Jean-Baptiste Duroselle (1917-1994). Ela “dá rumo à nossa ação diplomática tanto na América do Sul como também na América Latina, (sendo fundamental) para nossa melhor e mais efetiva inserção no mundo”.

“Vivemos um momento em que os próprios criadores das regras que moldaram o sistema internacional nos últimos 70 anos estão questionando essas regras. As placas tectônicas do poder ao nível global estão se mexendo, o que traz muitos riscos, mas também abre muitas possibilidades para trabalharmos juntos e potencializarmos nossos interesses”, afirmou o argentino Félix Peña, diretor do Instituto de Comércio Internacional da Fundação IBC.

“A principal questão entre nós não é por que devemos trabalhar juntos, mas como aprofundar nossa integração. A vantagem é que hoje temos mais experiência, como países democráticos em desenvolvimento e como região, para repensar essa metodologia. Cada vez mais se consolida a ideia de que a integração de duas ou mais nações significa trabalharem juntas de forma sustentável em função de interesses nacionais e de uma visão compartilhada, não necessariamente igual ou uniforme, do que o mundo oferece como desafios e possibilidades”, continuou. (Leia mais sobre a visão inovadora de Peña dos processos de integração logo abaixo.)

“Brasil e Argentina são dois países fundamentais no contexto hemisférico tanto do ponto de vista econômico como cultural e político. E as relações bilaterais vivem um momento muito auspicioso, com ambos os países cientes de suas responsabilidades regionais e globais e com uma percepção convergente sobre elas ”, afirmou o cientista político brasileiro Hussein Kalout, secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência da República.

Para Kalout, os dois países “dão passos para superar suas respectivas crises econômicas” e têm o desafio de “distensionar a pesada atmosfera social que tomou conta de ambos recentemente”. “O sucesso do Brasil depende da Argentina, e vice-versa”, afirmou.

Para o economista Rogelio Frigerio, ministro do Interior, Obras Públicas e Habitação da Argentina, os dois governos estão focados em desenvolver uma agenda conjunta de desenvolvimento econômico, comercial e criação de empregos. “Quando o mundo dá sinais de que pode se fechar, como temos visto recentemente, a resposta mais adequada que podemos dar é a de que deve haver maior integração entre nós”, defendeu.

Aprendendo com os ‘sherpas’

Lafer e Peña são duas das principais referências no debate acadêmico e no ‘policy making’ na área de política externa, respectivamente, no Brasil e na Argentina. Em 1973, escreveram o livro “Argentina e Brasil no Sistema de Relações Internacionais”, com prefácio do célebre sociólogo brasileiro Hélio Jaguaribe, 94 anos. “Foi um livro que remava contra a maré do clima político diplomático em ambos os países naquele momento e foi pioneiro em defender a relevância de uma atuação coordenada dos dois países em prol do desenvolvimento de nossa região”, disse o ex-chanceler brasileiro.

“Naquela época não havia internet e escrever um livro a quatro mãos entre Buenos Aires e São Paulo não foi uma tarefa tão simples. Foram muitas idas e vindas pelo correio”, lembrou o argentino.

Após várias décadas de distanciamento, a relação entre os vizinhos começou a ganhar corpo no final dos anos 1970, com o Acordo Tripartite Brasil-Argentina-Paraguai que encerrou as desconfianças em relação ao uso das águas da Bacia do Rio Paraná e do Rio da Prata e possibilitou a construção da Hidrelétrica de Itaipu. Aprofundou-se nos anos 80 com a renúncia de ambos os países ao desenvolvimento de armas nucleares e o estabelecimento de uma cooperação para o uso pacífico da energia nuclear. E no início dos anos 90 solidificou-se com a fundação do Mercosul, que também contou com Uruguai e Paraguai desde o  começo.

“Foi naquele contexto (do final dos anos 70) que teve início uma etapa de crescente aproximação Argentina-Brasil, na linha do nosso livro, favorecida nas décadas seguintes pela redemocratização nos dois países e pela transformação do cenário internacional, com o advento da globalização”, continuou Celso Lafer.

“Naquele livro, Celso e eu buscamos abordar como nossos países poderiam tirar melhor proveito dos desafios de um mundo que começava a abandonar a rigidez da confrontação nuclear (do período da Guerra Fria) e dava os primeiros passos no cenário muito mais amplo e complexo da confrontação industrial e tecnológica”, disse Félix Peña.

Segundo Peña, uma estratégia nacional bem definida por parte de cada um dos membros de um processo de integração é o ponto de partida, a chave para o sucesso da iniciativa. “(A integração) começa no (âmbito) nacional. Deixemos para a teoria isso de ser um processo linear que faça das partes um novo todo uniforme. (Na prática), trata-se de um equívoco, como bem mostram as resistências ao projeto de união na Europa. Nunca deixaremos de ser nações (independentes e com suas próprias características e objetivos) para sermos supranacionais”, afirmou.

Ainda segundo o especialista argentino, trabalhar juntos, do ponto de vista metodológico, exige uma contínua adaptação às mudanças da realidade, que acontecem 24 horas por dia. “Não existe GPS, mas sim um processo de construção contínuo, em que as regras devem ser permanentemente renovadas, sem que isso afete a segurança de uma coordenação institucionalizada a longo prazo”, completou.

Ao detalhar sua visão sobre como devem ser conduzidos os processos de integração, Peña lançou mão da figura dos “sherpas”, que são uma etnia do Nepal, contratados por alpinistas de todo o mundo para ajudá-los a conquistar os picos mais elevados da Cordilheira do Himalaia. “O sherpa não fixa o objetivo, quem faz isto é o alpinista-chefe da expedição. Mas é ele, com sua vivência ancestral da montanha, que orienta como chegar lá da maneira mais segura possível. Sem os sherpas, o risco de um acidente fatal é muito maior”, concluiu.

Pontos de uma agenda bilateral e regional

Veja abaixo quais são os principais desafios globais e regionais que Brasil e Argentina podem ter maior êxito em enfrentar por meio de uma atuação conjunta, segundo os participantes do encontro.

1. Ajudar a encontrar um caminho para a crise na Venezuela
“No passado recente, tanto a Argentina quanto o Brasil foram permissivos quanto às violações à ordem democrática postas em prática pelo regime chavista. A prioridade deve ser reduzir o impacto da crise no tecido social venezuelano”, defendeu Hussein Kalout, representante do atual governo brasileiro.

2. Renovação do Mercosul
O bloco comercial formado por Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai e Venezuela (suspensa desde dezembro por não cumprir obrigações assumidas quando se incorporou ao grupo, em 2012) passou nos últimos anos por uma fase em que questões políticas e ideológicas se sobrepuseram às econômicas, com reflexos negativos nas trocas comerciais e uma crescente paralisia decisória. “Não é possível que demore até 12 meses para aprovar a exportação de um conservante de doce de leite que não existia no Brasil”, exemplifica o ministro Rogelio Frigerio.

3. Novos acordos comerciais
O Mercosul tem um regra que determina que os países-membros não podem fechar acordos comerciais com outros países ou blocos comerciais em separado, mas apenas de forma conjunta, o que, segundo alguns analistas, pode ser prejudicial caso um deles deseje avançar em seu processo de integração com o mundo e outros, não. Para Félix Peña, eventuais acordos bilaterais não atados ao Mercosul tornariam “mais difícil preservar o trabalho conjunto. Por que não fecharmos novos acordos de forma conjunta?”. Segundo os participantes, as prioridades devem ser: a) Acordo com a União Europeia - Depois de anos de paralisia, as negociações de um acordo entre o Mercosul e a UE foram retomadas a partir de 2014 e aceleradas no ano passado. De acordo com especialistas, a saída do Reino Unido da UE e o sepultamento do acordo com os Estados Unidos, depois da vitória de Trump, poderão dar o impulso que faltava para o bloco europeu fechar um acordo com o Mercosul como uma forma de mostrar ao mundo que continua apostando na integração. A eleição do centrista Emmanuel Macron para a Presidência da França, defensor de uma renovação da UE, também pode ser um fator positivo; b) Aproximação com países do Pacífico - O Mercosul também deve buscar uma maior aproximação com os países banhados pelo Oceano Pacífico, tanto na própria América Latina (prioritariamente Chile, Peru, Colômbia e México) quanto no Sudeste Asiático. “Nas próximas décadas, haverá um progressivo deslocamento da dinâmica da economia mundial para a Ásia, em especial China e Índia. Por isso, devemos olhar com atenção para aquela região”, disse Celso Lafer; c) Acordo com o México - Em um momento em que o México passa por um momento difícil em sua relação com os Estados Unidos, devido à ameaça de construção de um muro na fronteira entre os dois países e à provável revisão do Nafta (tratado comercial entre EUA, Canadá e México), ambas promessas de campanha do presidente Trump, o Mercosul deveria estender a mão ao grande país latino norte-americano. “Brasil e Argentina devem trabalhar de forma sinérgica para que o México não fique abandonado, pois seria uma preciosidade tê-lo mais integrado ao hemisfério sul do continente latino-americano”, disse Kalout.

4. A dimensão ética do Mercosul
Segundo Peña, Uruguai e Paraguai, embora bem menores do que Brasil e Argentina em termos geográficos, populacionais e econômicos, devem ser tratados como parceiros plenos e iguais sob pena de não termos moral para reivindicar equidade com os grandes do mundo. “Um processo de integração também passa pela dimensão ética. Quando nos reunimos com os grandes (do planeta), questionamos toda e qualquer tentativa de assimetria (nos debates e nas decisões). É uma questão de coerência: devemos aplicar no Mercosul o mesmo (tratamento igualitário) que reivindicamos com o mundo. Este deve ser um marco da identidade do Mercosul no mundo”, afirmou o especialista em Relações Internacionais. “Frente a assimetrias e disparidades, devemos buscar mecanismos para neutralizar seus efeitos disruptivos e progredir na aproximação de nossos sistemas econômicos e políticos. E sempre estar disposto a começar de novo porque o processo é dinâmico”, ressaltou.

5. Integração às cadeias globais de valor
Isolados do resto do mundo e sem nenhum acordo comercial relevante nas últimas duas décadas, o Mercosul e seus integrantes ficaram de fora de uma das principais tendências do comércio internacional no Século 21, o surgimento das cadeias globais de valor, que tornam a produção internacional de bens mais barata e competitiva. “A integração às cadeias globais de produção no âmbito regional é um ponto de inflexão para qualificarmos nosso desenvolvimento”, afirmou Kalout. “Devemos nos articular a nível setorial, tanto no que diz respeito à produção de bens quanto de serviços, para conectarmos nossos sistemas produtivos e não sermos excluídos do jogo do comércio internacional”, completou Peña.

6. Combinar o potencial do agronegócio brasileiro e argentino
Brasil e Argentina são ambos grandes exportadores de produtos agropecuários, contribuindo de forma significativa para a segurança alimentar do planeta. Daí a importância de trabalharem conjuntamente para somar o potencial produtivo tanto em áreas tropicais quanto temperadas e melhorar as vantagens competitivas de ambos os países, assim como dos demais membros do Mercosul.


7. Atuação conjunta nas reuniões da OMC e do G20
Em dezembro deste ano, a Argentina será sede da próxima conferência ministerial da OMC (Organização Mundial do Comércio), dirigida pelo brasileiro Roberto Azevêdo. E, em 2018, a reunião do G20 será em Buenos Aires. “O que vamos propor? Qual a nossa visão sobre o futuro da economia global e o sistema internacional de comércio?”, disse Peña.

8. Segurança e paz internacionais
Embora não estejam no centro das principais questões que preocupam o mundo no que diz respeito à segurança e à paz internacional, como o terrorismo islâmico, as guerras no Oriente Médio, a questão dos refugiados e a proliferação de armas nucleares, os países da América Latina são campeões em violência comum, do crime organizado e do narcotráfico. “A América Latina e a América do Sul não estão no foco das tensões internacionais nesta altura do Século 21, mas também se tornaram mais heterogêneas e absorveram a lógica da fragmentação. Por isso, é importante que Argentina e Brasil adotem ações coordenadas e convergentes nos planos político, estratégico e de segurança”, disse Lafer. “Uma melhor sinergia no combate à lavagem de dinheiro, à corrupção, ao crime organizado e ao narcotráfico passa pela cooperação jurídica e na área de segurança entre os dois países”, afirmou o ministro do Interior argentino.

9. Ciência, tecnologia, meio ambiente e educação
Segundo os participantes, é preciso haver uma maior integração entre os dois vizinhos e o Mercosul como um todo na área de ciências, tecnologia e educação. “Uma das poucas coisas que ninguém discute na União Europeia é a solidariedade entre estudantes gerada por meio dos intercâmbios do programa Erasmus. ”, exemplificou Peña. Outra área em que devem atuar conjuntamente é no combate ao aquecimento global e na defesa do meio ambiente.

“Mais do que nunca, Brasil e Argentina precisam de um leitura compartilhada sobre o mundo e buscar pontos de convergência que nos facilite navegar em águas revoltas. Por isso, é tão importante participarmos de discussões como a que estamos tendo neste ‘think tank’, que é um espaço de reflexão e inteligência orientado à ação”, concluiu Félix Peña. “Que tal escrevemos outro livro, caro Celso?”, propôs o argentino ao colega brasileiro.

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Transmissão ao vivo, feita pelo YouTube, “2017 à vista: uma nova (des)ordem mundial”, com participação dos jornalistas Patrícia Campos Mello e Jaime Spitzcovsky.

Otávio Dias, jornalista, é especializado em questões internacionais. Foi correspondente da Folha em Londres, editor do estadão.com.br e editor-chefe do Brasil Post, parceria entre o Huffington Post e o Grupo Abril.

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