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Debates

China vive ‘contradição entre desconfiança interna e confiança externa’

/ auditório da Fundação FHC


“Em termos políticos, a China sob Xi Jinping retrocedeu 40 anos internamente.”

David Shambaugh, professor de Estudos Asiáticos da Universidade George Washington (EUA)

A China vive hoje uma contradição. De um lado, um clima político interno cada vez mais repressivo e autoritário, que indica insegurança em relação ao futuro do regime e desconfiança de que possa acontecer algo semelhante ao colapso da União Soviética no início dos anos 1990. De outro, uma política externa extremamente confiante, em que a nova superpotência asiática busca ocupar espaços cada vez mais relevantes na comunidade internacional e nas instituições de governança global.

“Enquanto internamente o presidente Xi Jinping e a alta cúpula do Partido Comunista agem de forma quase obsessiva no sentido de implementar um rígido controle sobre a sociedade, o que é estranho pois a economia, apesar dos problemas, vai bem em diversos aspectos, no plano externo ocorre o oposto. Nos últimos anos, a China tem sido cada vez mais presente e assertiva no cenário internacional e, desde a eleição de Donald Trump para a Casa Branca (2016), busca ocupar o vácuo deixado pelo crescente isolacionismo norte-americano”, disse o professor norte-americano David Shambaugh, diretor fundador do Programa de Política sobre a  China na Universidade George Washington, em palestra na Fundação Fernando Henrique Cardoso.

Shambaugh visitou o Brasil em pleno 19º Congresso do Partido Comunista da China, realizado entre os dias 18 e 24 de outubro em Pequim. “Quando fechamos a data de minha vinda a esta Fundação, as datas exatas de início e fim do Congresso ainda não haviam sido divulgadas. Acertamos o ‘timing’ em cheio, pois daqui a apenas 18 horas finalmente saberemos quem serão os sete membros do Comitê Central do PC chinês nos próximos cinco anos. O que é certo é que todos serão homens com 60 anos ou mais, vestindo terno escuro e gravata”, brincou o palestrante.  

Além da confirmação de Xi Jinping como o homem mais poderoso da China por mais um mandato de cinco anos, o especialista norte-americano, autor de dezenas de livros, entre eles “China Goes Global: The Partial Power” (2013) e “China’s Future” (2016), chamou atenção para a definição do primeiro-ministro, cargo mais importante depois do presidente.

“Se o atual premiê Li Keqiang continuar no cargo, as amplas reformas econômicas anunciadas em 2013 (durante o ‘third plenum’, ou terceira plenária, do 18º Congresso) devem continuar em larga medida empacadas. Mas, se o chefe da campanha anticorrupção Wang Qishan for indicado premiê, poderemos ver significativos avanços”, afirmou. As cerca de 350 reformas econômicas anunciadas em 2013, inspiradas em recomendações do Banco Mundial, visam transformar a China em uma economia do Século 21, inovadora e de alto valor agregado, mas não houve avanços consistentes em sua implementação nos últimos quatro anos, de acordo com o palestrante.

“Xi Jinping tem hoje uma posição tão dominante no regime que, com exceção do premiê, todas as demais cinco posições no Comitê Central do PC são praticamente irrelevantes. A decisão sobre o premiê é, portanto, a mais importante deste Congresso. Eles realmente precisam de um primeiro-ministro forte para implementar o pacote de reformas econômicas anunciado com toda a pompa em 2013, mas não colocado em prática desde então”, afirmou. No dia seguinte à fala de Shambaugh, Li Keqiang foi confirmado premiê e Wang Qishan deixou sua posição no Comitê Central do PC chinês, frustrando as expectativas do palestrante.

Durante e após o término do 19º Congresso, inúmeros artigos foram publicados sobre o fortalecimento da liderança de Xi Jinping, que se tornou o homem mais poderoso da China desde Mao Tsé-Tung (1983-1976), e sobre as novas diretrizes anunciadas em seu discurso de mais de três horas de duração. Para saber mais sobre os resultados do Congresso, leia reportagem da BBC Brasil e artigo do jornalista britânico Martin Wolf, traduzido pela Folha.

Neste texto, resumiremos o que aconteceu em Pequim no final de outubro em apenas uma frase de Shambaugh: “Com Xi, o regime chinês deixa de ser um sistema político baseado em decisões consensuais e coletivas da alta cúpula, como tem sido desde Deng Xiaoping (que liderou o país entre 1978 e 1992 e instituiu o “socialismo com características chinesas”, ou seja, uma combinação singular entre economia planejada e economia de mercado), e volta a ser um sistema patrimonialista e patriarcal, baseado no governo de um homem só, como durante o período de Mao. Em termos políticos, a China sob Xi retrocedeu 40 anos internamente.”

Em sua palestra, Shambaugh buscou traçar os 4 cenários mais prováveis para a China nas próximas décadas, mas fez uma ressalva: “A China é um país tão grande, diverso e complexo que, ao fazermos qualquer previsão ou afirmação sobre o futuro, o oposto também pode ser verdadeiro. Há diversas tendências contraditórias acontecendo simultaneamente.”

       1º cenário: continuação do ‘autoritarismo duro’

Caso mantenha o rumo atual, caracterizado por um sistema leninista em que o Partido Comunista mantém controle total sobre todos os setores do Estado e da sociedade, o governo poderá realizar reformas econômicas limitadas, mas não deverá ter sucesso em fazer a necessária transição para uma economia realmente inovadora e de alto valor agregado. Consequentemente, dificilmente a China escapará da “armadilha da renda média”.

De acordo com estudo do Banco Mundial citado pelo palestrante, dos 101 países que, desde 1960, atingiram o status de “economia de renda média” apenas 13 se tornaram economias de fato industrializadas. Desses 13, 11 eram governados por autocracias políticas e transitaram rumo à democracia à medida que se desenvolveram e se tornaram mais ricos. De acordo com os critérios do Banco Mundial, os países de renda média têm renda per capita entre US$ 1.026 e US$ 12.475, mas, dentro deste largo espectro, existe a faixa dos países com “renda média superior”, entre US$ 4.036 e US$ 12.475.

Um exemplo de país bem-sucedido nessa trajetória é a Coreia do Sul. O primeiro arranque do seu desenvolvimento se deu sob uma ditadura, nas décadas de 60 e 70, mas a partir dos anos 80, quando o país passou a uma fase mais avançada de sua industrialização, o autoritarismo deu lugar à democracia. Em 2015, a renda per capita sul-coreana foi de US$ 27.450 (veja relação de todos os países)

“Esse estudo do Banco Mundial mostra que existe forte relação entre política e desenvolvimento econômico, entre uma sociedade mais livre e autônoma e uma economia com foco em inovação. Para evoluir de uma economia exportadora de produtos manufaturados de baixo valor agregado para uma economia de alto valor agregado, é necessário investir fortemente não somente em tecnologia, mas em gestão e comunicação do Século 21. A opção por um autoritarismo mais duro poderá resultar em estagnação econômica e eventual declínio, embora não acelerado”, disse Shambaugh.

       2º cenário: ‘neototalitarismo’

Segundo Shambaugh, desde 1978 (quando Deng Xiaoping se consolidou como líder máximo do país) a China vem alternando fases de relativa abertura política, que costumam durar de 6 a 7 anos, com períodos de endurecimento interno, com duração de cerca de 2 anos. Um dos períodos mais repressivos foram os anos subsequentes às manifestações pró-democracia na Praça da Paz Celestial (Tiananmen) em 1989, brutalmente suprimidas pelo Exército. Mas, depois de alguns anos, houve um novo período do que o palestrante chamou de “autoritarismo mais suave”.

Desde 2009 (ainda antes de Xi Jinping se tornar presidente), no entanto, começou a atual fase de transição para um “autoritarismo mais duro”. Entre outros motivos, o endurecimento se explica pelo temor de que a crise financeira global e a consequente desaceleração da economia chinesa pudessem causar protestos em cidades de médio porte e na região rural. Nos últimos oito anos, o orçamento destinado a garantir a segurança interna superou o orçamento militar, de cerca de US$ 160 bilhões anuais.

“A atual fase de autoritarismo já dura 8 anos, caracterizada pela presença do Partido em todas as instituições, dos governos locais, regionais e central às Forças Armadas, das empresas estatais aos bancos, da mídia às universidades e ONGs. Até mesmo as empresas estrangeiras possuem comitês do partido e enfrentam barreiras para operar no país, com custos crescentes”, disse o palestrante.

Segundo Shambaugh, todo regime leninista tende a chegar a um ponto em que a burocracia se torna cada vez mais corrupta, esclerosada e paralisada, e os cidadãos se tornam crescentemente frustrados devido à falta de oportunidades, autonomia e acesso à informação. “Se a visão de Xi Jinping de um controle interno cada vez mais rígido for levada às últimas consequências, a China se tornará um regime neototalitário, semelhante ao existente entre 1989 e 1992 (pós-Tiananmen). Nesse caso, haverá uma aceleração da regressão política e do processo de enrijecimento da burocracia estatal, com possíveis impactos na economia. E, em algum momento, a China poderá enfrentar seu ‘momento soviético’. Mas não tenho certeza de que isso acontecerá, pois existe resistência interna ao ao endurecimento do regime”, afirmou.

        3º cenário: retorno ao ‘autoritarismo suave’

Caso retorne ao “autoritarismo suave”, experimentado entre 1997 e 2008, período que engloba parte dos mandatos presidenciais de Jiang Zemin (1993-2003) e Hu Jintao (2003-2013), aumentam as chances de uma transição política e de realização de reformas econômicas mais amplas, como as anunciadas em 2013, que, eventualmente, poderiam conduzir ao quarto cenário (abaixo). “Não há, no entanto, indícios de que Xi pretenda seguir este caminho”, disse.

        4º Cenário: ‘semidemocracia’

No cenário mais otimista, o regime obteria amplo sucesso nas reformas econômicas baseadas em modernização e inovação e faria uma transição do “autoritarismo suave” para uma “semidemocracia”. “Seria como entrar em um restaurante e pedir, como entrada, autoritarismo suave e, como prato principal, uma semidemocracia ou uma democracia com características chinesas”, disse.

“Prevalecerá a visão de Xi baseada na ideia de ‘um Partido (Comunista) forte para uma China forte’? Ou o PC terá a confiança de progressivamente flexibilizar o regime de cima para baixo, com o objetivo de conduzir o país ao êxito econômico e social? É isso que está em jogo e só o tempo trará as respostas”, afirmou o professor norte-americano.

       As forças e as fraquezas chinesas

Em sua exposição, Shambaugh fez uma relação dos principais desafios econômicos diante do governo em Pequim:

- Dívida superior a 280% do PIB (Produto Interno Bruto);

Economia desequilibrada (alto investimento público para manter o crescimento econômico, baixo consumo privado e  poupança “excessiva”);

- Moeda chinesa (yuan) subvalorizada em relação a outras divisas mundiais;

- Pacote de reformas econômicas anunciado em 2013 segue empacado;

- Empresas e cidadãos chineses estão enviando grande quantidade de dinheiro para o exterior (cerca de US$ 1 trilhão por ano nos últimos 3 anos), num claro sinal de desconfiança em relação à economia do país, o que exigiu a imposição de rígido controle à saída de capitais;

- Ausência de reformas no sistema financeiro (bancos);

- Setor industrial possui excesso de capacidade de produção e precisa se reestruturar;

- Bolha no setor imobiliário;

- Bolha no mercado de ações;

- Mercado de trabalho antiquado;

- Necessidade de mais abertura e maior segurança jurídica para as empresas estrangeiras atuarem no país.

       Mas o palestrante também listou diversas “boas notícias”:

- Mesmo desacelerando (em relação ao passado), a economia chinesa continua crescendo em torno de 6 a 7% anuais, uma das mais elevadas taxas de crescimento do mundo;

- O PIB chinês superou os US$ 10 trilhões anuais, já é a segunda maior economia do mundo e ultrapassará os EUA em 2025;

- Apesar do Estado forte, 70% da economia está nas mãos do setor privado;

- Investimento em R&D (pesquisa e desenvolvimento) é de 2,3% do PIB (menos do que a média de 3% da OCDE), mas vem crescendo a cada ano;

- País planeja se tornar líder mundial em 12 áreas, entre elas trens super-rápidos, inteligência artificial, energia verde (incluindo solar), biotecnologia, nanotecnologia e outras novidades tecnológicas de ponta na área médica;

- Até 2030 toda a frota será substituída por carros elétricos;

- Projeto One Belt & One Road, com até US$ 14 trilhões de investimentos em infraestrutura em 68 países da Ásia Central, Sudeste da Ásia, Oriente Médio e Europa;

- Aposta no RCEP, acordo comercial entre países asiáticos, como alternativa à Parceria Transpacífica (ameaçada pela retirada dos EUA anunciada pelo presidente Donald Trump);

- Criação de hubs de inovação em Pequim, Shenzen e Chongqing, entre outros regiões;

- Reforma regulatória em curso já eliminou quase 1.500 regras consideradas prejudiciais ao funcionamento da economia.

      Três tendências para o mundo ficar atento

Em sua palestra, Shambaugh destacou algumas tendências em curso que devem ter impacto fora da China durante os próximos anos. A primeira delas, já citada logo no início deste texto, é o fortalecimento do papel externo da nova potência asiática, com destaque para uma maior participação do país em instituições ou fóruns multilaterais como ONU, G20 e BRICs. “A China sempre foi acusada de não contribuir proporcionalmente a seu tamanho e sua importância para o sistema internacional. Não mais. Sob Xi Jinping, e diante das políticas isolacionistas de Trump e da crise das instituições de governança global, a China busca se tornar um ator global dos mais relevantes”, disse o professor norte-americano.

Esse novo protagonismo chinês pôde ser visto recentemente na adesão da China aos esforços para conter o aquecimento global, especialmente durante a Cúpula de Paris (2015), assim como no combate a pandemias, operações antipirataria e participação em missões de paz internacionais. Mas o grande projeto chinês é o “One Belt & One Road”, cujo objetivo é criar uma “Rota da Seda do Século 21” para conectar o país por terra e mar a Sudeste da Ásia e Oceania, Europa Central e Rússia, Oriente Médio, África e Europa. “A América Latina, por enquanto, está de fora, mas tenho certeza de que eles vão achar um jeito de incluí-la”, disse.

Ao mesmo tempo que se torna mais ativa no front externo, no campo militar a ordem é preparar a China para lutar e vencer guerras. “Pela primeira vez desde 1949 (ano em que o Partido Comunista conquistou o poder e fundou a República Popular da China), o Exército de Libertação Popular está abandonando o antigo modelo militar soviético para adotar um novo modelo inspirado nos EUA, com forças militares combinadas e operações com alto grau de precisão. Há investimento pesado em novos equipamentos, que incluem guerra cibernética, mísseis de longo alcance, navios, aviões e submarinos nucleares de última geração. Serão necessários pelo menos dez anos para mudar o curso do enorme aparato militar chinês, inclusive porque há muita corrupção entre os militares e grandes interesses em jogo, mas o rumo está definido”, disse o palestrante.

Shambaugh também revelou algo inquietante: a China tem ampliado sua rede de espionagem no exterior, incluindo até mesmo o envio de estudantes para monitorar seus colegas em universidades nos EUA, na Europa, na Austrália e em outros países. “Atualmente, estudantes chineses no exterior são constantemente vigiados por outros estudantes a serviço do governo. Todo o sistema de controle e censura da opinião pública existente dentro do país está sendo exportado, o que deveria ser motivo de preocupação em todas as sociedades democráticas”, disse.

       Uma palavra sobre o combate à corrupção

Embora Pequim tenha realizado nos últimos anos uma verdadeira caça aos corruptos dentro do Partido Comunista, nos diversos níveis de governo e nas Forças Armadas, a atual campanha anticorrupção “foca na condenação pública do estilo de vida (dos acusados) e não nas origens sistêmicas da corrupção.”

“Criminosos e corruptos emergem quando o sistema permite que eles ajam com relativa liberdade. Mas, apesar da repressão, pouco se fez na China para incrementar o Estado de Direito, tornar o Estado mais transparente e garantir independência ao Judiciário e aos meios de comunicação”, afirmou David Shambaugh.

“Democracias não podem agir contra a corrupção da forma como a China tem feito, com base em investigações secretas, denúncias entre colegas e desaparecimento de pessoas. Nesse sentido, o que está acontecendo no Brasil recentemente, com a criação de leis anticorrupção e o fortalecimento das instituições de controle, é mais consistente e promissor. Sem falar que, quando surge uma acusação grave, vocês podem tirar seus líderes do poder. Na China, isso não é possível”, concluiu o palestrante.

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Otávio Dias, jornalista, é especializado em questões internacionais. Foi correspondente da Folha em Londres, editor do estadão.com.br e editor-chefe do Brasil Post, parceria entre o Huffington Post e o Grupo Abril.

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